V. Conceções pedagógicas de Rodolfo Agrícola Erasmo, Luís Vives, Rabelais e Montaigne

Com ser otimista, o seu humanismo não foi, porém, paganizante, estetizante e egocêntrico. Na sua mente, como mostrou W.H. Woodward, os studia humanitatis proprocionavam o ideal educativo necessário ao mundo moderno, em virtude de revigorarem a religião, de despertarem a idealização de um regime político-social de paz, pelo conhecimento retrospetivo da Roma imperial, de purificarem a mente e de inculcarem a correlação do ideal e da conduta. Por isso, na intenção de Erasmo, os studia humanitatis, como base da instrução e da própria educação, tinham por destino a formação da personalidade, a constituição do saber essencial, a depuração do gosto literário, e a realização do ideal cristão pela recuperação dos valores sociais subjacentes à organização imperial romana.

Não sem fundamento, há quem julgue que os intuitos educativos tiveram o primado na multiplicidade de dotes e de aplicações do génio de Erasmo.

João Luís Vives (1492-1540) nasceu em Valência, mas depois dos dezassete anos a sua vida decorreu fora de Espanha — primeiramente em Paris (1509-1512), onde estudou e se apercebeu das deficiências e defeitos da formação dialética tradicional, depois em Lovaina (1512-1522), onde explicou os clássicos, designadamente Virgílio, Cícero, Plínio-o-Moço, e Pompónio Mela, mais tarde em Oxford, em cujo Colégio de Corpus Christi ensinou latim (1523), e por fim na corte inglesa, onde foi preceptor da princesa Maria, a futura rainha Maria Tudor, para cuja educação escreveu o De ratione studii puerilis (1523) e o Satellitium animi (Companheiro da alma), que é uma coletânea de máximas. Impossibilitado de continuar a viver na Inglaterra, pelo seu parecer favorável à rainha D. Catarina, sua compatriota, na anulação do matrimónio com Henrique VIII, estabeleceu-se na Bélgica, em Bruges, onde passou os últimos anos de vida (1529-1540), ensinando e escrevendo.

Como Erasmo, com quem entreteve relações de amizade, Vives foi um publicista, de variada produção literária, cuja temática recaiu sobre assuntos apologéticos, filosóficos, ético-políticos — v.g. Introductio ad sapientiam (1524), De subventione pauperum (1525), De concordia et discordia in humano genere (1529) e De pacificatione — e de teoria da educação.

A obra pedagógica por excelência de Luís Vives é o tratado Do ensino das disciplinas (De tradendis disciplinis), publicado em 1531, mas anteriormente à redação deste livro já se havia ocupado de diversos temas docentes e educativos. Assim, no In pseudo dialecticos (1519), tinha criticado acerbamente o teor e a metodologia do ensino das «artes» nos colégios de Paris, principalmente no respeitante à Dialética e à Retórica; no Da formação da mulher cristã (De institutione foeminae christianae, 1523) e no Do dever marital (De officio mariti), que se relacionam entre si, ocupara-se, respetivamente, da formação e da conduta da mulher nos estados de solteira, de casada e de viúva, e dos deveres do homem casado; e no Do ensino infantil (De ratione studii puerilis, 1523) expusera, em duas cartas, o programa e a metodologia da instrução humanista na primeira idade escolar. Com serem dignos de apreço, estes escritos estão, no tempo e no mérito, aquém do Do ensino das disciplinas (1531), do Da alma e da vida (De anima et vita, 1538), que é um tratado de Psicologia escrito com a intenção de ajudar o espírito a dirigir-se a si mesmo, e, portanto, com intenção educativa, e dos Exercícios da língua latina (Linguae latina exercitatio, 1538), destinados ao uso dos principiantes, pelo que foram designados frequentemente de Diálogos e que alcançaram larga e continuada divulgação. O Da alma e da vida desprendeu-se da tradição comentadora de Aristóteles para aplicar o método de observação, sendo particularmente notável na análise das atividades do espírito, que, como a memória e a associação de ideias, têm mais estreita conexão com a atividade discente, educativa e instrutiva.

O Do ensino das disciplinas (De tradendis disciplinis) é a obra pedagógica capital de Luís Vives; veio a público em 1531, juntamente com o De causis corruptarum artium e com oito escritos de artibus, de acentuado carácter filosófico, todos reunidos sob o título De disciplinis libri viginti, com dedicatória a D. João III, rei de Portugal.

O De causis corruptarum artium (Das causas que corrompem o ensino das artes) relaciona-se com o Contra os falsos dialécticos (In pseudo dialecticos) e, como o título indica, tem acentuado carácter crítico. No primeiro dos sete livros em que está dividido, Vives ocupa-se das causas gerais, que corrompem a atividade científica e docente, designadamente das que procedem da deficiência natural do espírito, da desvirtuação das qualidades morais, das guerras, do fanatismo, da inépcia e falta de escrúpulo dos comentadores, da rotina, arrogância e ignorância dos mestres, etc. No livro segundo, considera, em especial, a decadência da Gramática; com base no conceito vigente na época helenística, distingue o «gramático» (litteratus) do «gramatista» (litterator), tendo aquele por missão a conservação e defesa dos tesouros literários e por função pedagógica, a formação do espírito mediante o estudo das litterae humaniores. O livro terceiro tem por objeto a situação docente da Dialética, fazendo o exame da Lógica aristotélica e condenando o abuso das disputas silogísticas, que corrompem o espírito e desviam o ensino da Lógica do seu objetivo próprio. No livro quarto trata dos vícios que adulteram a Retórica, como a imitação do estilo e a baixeza dos assuntos. No livro quinto, passa em revista, a situação docente das Ciências Naturais, da Medicina e das Matemáticas, juntando às quatro disciplinas tradicionais do quadrívio a perspetiva (ótica). Finalmente, nos livros sexto e sétimo, verbera o abandono do estudo da Filosofia Moral, considerando que a Ética socrática, platónica e estoica, está mais próxima do Cristianismo do que a Ética de bens e de virtudes de Aristóteles, e condena as causas que concorreram para a degenerescência do ensino jurídico e para a adulteração do Direito, como a casuística, a má redação dos diplomas e o poder tirânico dos soberanos.

Após a consideração das causas da esterilidade do ensino, Vives empreendeu no Do ensino das disciplinas (De tradendis disciplinis) a reconstrução do plano de estudos e dos métodos docentes em ordem à formação cristã, como, aliás, explicitamente declara o subtítulo desta obra: De institutione christiana. Pela variedade e ordenação dos assuntos, os cinco livros desta obra, que são seguidos de um apêndice acerca Da vida e costumes do erudito (De vita et moribus eruditis), formam como que um tratado de Pedagogia, pois versam sucessivamente temas relativos às origens e ao alcance dos conhecimentos científicos, à Religião como ponto de partida e finalidade da cultura, ao objeto das diversas disciplinas, à organização escolar, ao ensino das línguas e das ciências e à relação dos estudos com a vida.

No que toca à organização escolar, ocupa-se da localização das escolas, que cumpre seja em sítio salubre e sossegado, longe da tentação de divertimentos; do pessoal docente, que deve ser cientificamente competente, pedagogicamente hábil e moralmente de bons costumes; do ensino público e do doméstico, não se decidindo pela preferência de um em relação ao outro; da necessidade de ter em conta a diversidade do «engenho» dos alunos; da atividade discente, das provas e exames, que devem prestar-se com simplicidade; e, finalmente, da apreciação da capacidade dos alunos, quer pelo método da facilidade, mediante a resolução de cálculos ou a rapidez da memorização, como haviam aconselhado, respetivamente, Pitágoras e Quintiliano, quer pelo dos jogos, que Vives propõe, mediante os quais se conheceriam os hábitos, tendências e aptidões.


?>
Vamos corrigir esse problema