V. Conceções pedagógicas de Rodolfo Agrícola Erasmo, Luís Vives, Rabelais e Montaigne

Com Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) surgiu na literatura francesa um novo ideal educativo, ligado à formação do perfeito cavalheiro, ao sentido prático da instrução e ao valor da experiência da vida.

Nasceu Montaigne em 1533, no castelo de Montaigne, no Perigord, onde viveu depois de 1570, redigiu e limou os Ensaios e faleceu em 1592. Vindo à luz no ano imediato ao do aparecimento do Pantagruel (1532) de Rabelais, foi educado já segundo a metodologia humanista: no castelo paterno aprendeu o latim como língua viva, ensinado por um preceptor alemão, propositadamente escolhido para o furtar ao trato da língua francesa; e a seguir, dos sete aos treze anos, estudou humanidades no Colégio de Guyenne, em Bordéus, de cujo ensino conservou desagradável recordação, muito embora guardasse de André de Gouveia, que então regentava este colégio, a excelente impressão que o levou a escrever no ensaio sobre a Educação das crianças, que ele era «le plus grand principal de France». Formado em Direito, exerceu a magistratura no Parlamento de Bordéus, demitindo-se em 1570 para se retirar para o castelo natal, onde, rodeado de copiosa livraria de autores latinos, franceses, espanhóis e italianos, passou o resto da vida a ler, a refletir e a escrever, com a interrupção dos quatro anos em que administrou o município de Bordéus e viajou por Itália. Deste isolamento nasceram os Ensaios, nos quais versou variados assuntos, que impregnou de meditada reflexão, nutrida aliás, da fina observação de si mesmo, da experiência humana e social, colhida no trato da vida e no desempenho dos ofícios e cargos, e dos ensinamentos de vastas leituras. A sua temática teve por objeto o homem vivente, visto à luz da observação do seu comportamento e de testemunhos literários, e não de processos dedutivos, tanto mais livremente quanto é certo que o espírito de Montaigne se não deixou aprisionar por uma filosofia dogmática e definitiva, a ponto de se poderem acentuar na sua evolução intelectual a sucessão das atitudes estoica, cética e epicurista, aliás moderada e complacente, que foi a sua derradeira posição.

Os Ensaios foram publicados em duas edições sucessivas em 1580 e 1588, tendo esta última cinquenta e três acrescentamentos; quando faleceu, Montaigne trazia entre mãos a terceira edição, que foi dada a público postumamente em 1595. Estes dados mostram o interesse e devoção que dedicou aos Ensaios, que logo alcançaram grande notoriedade e cuja forma assinala a criação do ensaio como género literário, destinado, aliás, a largo cultivo e ulterior desenvolvimento. Do vasto e variado repositório de observações psicológicas, introspetivas e extrospetivas, e de juízos gerais, que dão atrativo e originalidade aos Ensaios, importam ao nosso objeto os capítulos «Do pedantismo» (Livro I, cap. XXIV), «Da educação das crianças» (Livro I, cap. XXV), «Dos livros» (Livro II, cap. X), «Da afeição dos pais aos filhos» (Livro II, cap. VIII) e «Da arte de conferir» (Livro III, cap. VIII). Nestes capítulos, em especial no «Da educação das crianças», Montaigne não se propôs redigir dissertações pedagógicas, porque, em rigor, são como que «conversações», nas quais fala de si mesmo, das suas leituras e da sua experiência, e a reflexão adquire, por vezes, sentido admonitório e preceptivo.

Como todos os grandes educadores, o pensamento pedagógico de Montaigne exprimiu-se criticamente e construtivamente. Nascido e educado em pleno triunfo dos Studia humanitatis, a sua crítica não se dirigiu, como a de Rabelais, contra o teor do ensino medieval mas contra o pedantismo e os exageros da preceptiva gramatical e retórica; e o seu pensamento instaurador também não teve em vista, como o autor do Gargantua e Pantagruel, o ideal do homem universal, erudito nas letras antigas e sábio na totalidade das ciências da natureza, mas a formação do perfeito cavalheiro, de conhecimentos gerais, de juízo reto, de bom-senso prático e com o sentido da responsabilidade. Montaigne não contestou a necessidade da educação feminina, mas não julgou necessário que as mulheres carecessem de instrução sólida, pelo que as suas reflexões pedagógicas se dirigiram estruturalmente à formação masculina.

O ensaio acerca Do pedantismo estabelece, por assim dizer, o objetivo da educação, pondo a nu o vício que mais importa remover do ensino. A seu ver, o pedantismo manifestava-se principalmente pelo abuso da dialética e da silogística e pela exibição da erudição. Consequentemente, foi levado a criticar: os mestres, que se tornam pedantes, já pelo aparato da erudição balofa, já pelo uso das discussões e das disputas dialéticas, já ainda pelo recurso à severidade e ao rigor da disciplina; o método, em uso nalgumas escolas, na medida em que por ele se apela principalmente para a memória e se gera um saber superficial, inconsistente e sem raízes na realidade; e os resultados, que são nulos, por somente formarem seres presunçosos.

São assim, criticadas e postas de lado, as práticas docentes coetâneas que tinham em vista a erudição vasta do letrado, a destreza na discussão dialética e a perfeição das composições retóricas, cujas regras e exercícios das «partes do discurso» e das «figuras» do estilo haviam substituído na escola de alguns mestres de humanidades as antigas disputas da argumentação escolástica. A todas estas práticas e objetivos opôs Montaigne a aquisição de uma instrução filtrada pela observação direta e pela reflexão em ordem à coerência e à consistência do juízo, isto é, como ele diz numa frase concisa e expressiva, «une tête bien faite a une tête bien pleine».

As páginas acerca Da educação das crianças foram escritas para a condessa de Gurzon, cuja família prezava e a quem quis significar, nas vésperas de ser mãe, o interesse pelo ser que ela daria ao mundo. Neste escrito famoso, definitivamente redigido em 1579, Montaigne tem em vista a formação de um indivíduo que, pelo nascimento e pela orgânica social, está destinado a ser um cavalheiro, isto é, um «honnête homme» como por então se designava o homem de sociedade e de valimento social. Pelo destino, as suas reflexões pedagógicas são, pois, socialmente limitadas, mas porque o perfeito cavalheiro não o é sem ser também uma personalidade bem formada, as observações e juízos de Montaigne possuem também significação e alcance geral. No Da educação das crianças, Montaigne falou muito de si, das suas recordações de menino e de colegial, das suas leituras e preferências, para de umas e de outras tecer uma meditação de teor e de sentido educativo. A seu juízo, a educação é necessária, mas não acreditava que por si só ela determine o futuro dos educandos, em virtude da hereditariedade e das tendências nativas lhe oporem alguns limites.

Como meio educativo, a sua preferência dirigiu-se para a educação privada, ministrada desde tenra idade por um aio ou preceptor, reprovando assim, implicitamente, a educação familiar e a educação pública dos colégios — aquela, por amimada, e esta, por severa. Dado o educando que tem em vista, o objetivo da educação que Montaigne aconselha dirige-se à formação de um cavalheiro, de bom senso e de porte digno, e não letrado ou sábio, pelo que o estudo das ciências e das letras não constitui fim em si, mas somente meio ou instrumento de preparação para a vida real. O que importa e mais vale é a formação do juízo, adequado, consistente e coerente, e, portanto, a capacidade de discernimento e de orientação. Formar o juízo consiste, pois, em ensinar a raciocinar com palavras, como fazem os «latineurs» e os mestres «d'ergotismes»; e para o formar, os melhores mestres não são os pais, a quem o amor muitas vezes cega, nem os pedantes da erudição e da subtileza, nem ainda os livros, que enchem a memória de coisas a que se não liga sentido, nem os colégios, de disciplina severa e rígida, mas a lição da experiência vivida, ministrada por um preceptor que tenha «antes a cabeça bem organizada (faite) do que muito recheada (pleine)» e deixe «pular» o educando, o trate mais com doçura do que com castigos, pouco lhe pedindo à memória e muito mais à boa vontade e decisão.


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