Joaquim de Carvalho, historiador da cultura portuguesa, por José v. de Pina Martins ? A plena maturidade

Para dar clareza ao conceito histórico do Humanismo português, Joaquim de Carvalho sabe surpreender com equilíbrio e lucidez um dos aspetos fundamentais da personalidade de Sá de Miranda, com um referente, hoje porventura discutível, que investe “o travor acrimonioso da misantropia” (em nosso entender este juízo revela o peso cultural de uma tradição, talvez suscetível de contestação à luz dos textos). Mas saber descobrir na sua poesia “o protesto da dignidade e da responsabilidade moral” equivale a reconhecer que essa poesia é essencialmente caracterizada, nalguns dos seus aspetos primários, pelo sopro quase épico que leva o poeta a protestar contra as injustiças do seu tempo e a tomar a defesa dos humildes. Ora, que saibamos, este aspeto da obra de Sá de Miranda não foi ainda, até hoje, suficientemente estudado. Igual lucidez no que respeita a situar a sátira vicentina nas correntes culturais do seu tempo. “O pato medieval” seria ainda, em Gil Vicente, “ostensivo e predicante”; mas nem por isso se deixa em branco “a evolução do seu espírito no sentido da repreensão e da liberdade crítica”.

A nossa literatura de Quinhentos “oscilou entre duas coisas raras: o amor da beleza, tranquila e clara, e a capacidade inesgotável de entusiasmo”. Neste encómio ingénuo e genuíno, que se funda numa pesquisa ao mesmo tempo aguda e vasta de textos em latim e em vulgar, tem Joaquim de Carvalho uma daquelas fórmulas destinadas a ficar como que gravadas no bronze perdurável da História. Foram esse amor de uma beleza serena e límpida e esse entusiasmo como fonte inexaurível de criação (moral, civilizacional e estética) que terão levado os Portugueses às viagens marítimas e à participação no grande movimento cultural do Renascimento europeu. Daí que, ao sublinhar a importância da nova filologia, Joaquim de Carvalho se não tenha enganado no ato de reconhecer que, de todos os livros publicados nas primeiras décadas de Quinhentos, foi a Epistola Plinii de 1529 o mais importante. Mesmo que os gramáticos e os retores descubram e provem, com exatidão e medida, que a edição de Martinho de Figueiredo, seguindo embora o exemplo de Poliziano, tem falhas e defeitos, foi de verdade, como escreve o Mestre de Coimbra, “o primeiro livro novo, renascente, por pretender explicar filológica, histórica e literariamente uma obra antiga na sua própria antiguidade”, com métodos modernos para a época em que surgiu.

A Itália encontra-se, assim, nas origens do nosso Renascimento humanístico: Joaquim de Carvalho sublinha-o com uma documentação abundosa, embora se trate de uma análise necessariamente sintética. São particularmente valiosos, a este respeito, os dois excursos sobre Francisco de Holanda e os seus propósitos de renovação da arte e ainda acerca da influência de Poliziano na cultura portuguesa, durante o reinado de D. João II.

Mas sublinha-se igualmente a projeção dos Descobrimentos portugueses, já durante o reinado manuelino, no próprio cerne do Humanismo italiano, que a tal respeito se exprime, depois das cartas daquele humanista, pela palavra ardente de Aldo Manuzio, no prólogo da sua edição do corpus platónico em 1513. A importância deste texto tem passado despercebida aos nossos investigadores. Com a publicação recente dos prefácios aldinos numa edição sumptuosa, esperemos que seja possível, entre nós, relevar o que esse introito representa de dimensão universal, na pena do mais insigne impressor-humanista do século XVI, para os Descobrimentos portugueses, no limiar da Idade Moderna. Nos reinados de D. Manuel I e de D. João III, porém, “as vias de penetração do novo saber deslocaram-se, seguindo o rumo da França e da Flandres”. Nos dois últimos capítulos deste admirável estudo, Joaquim de Carvalho sintetiza magistralmente as relações europeias dos humanistas portugueses, de Diogo de Murça a Damião de Góis, que à Itália ainda ficou fiel, para o estudo da latinitas. Luís de Matos deu-nos um livro valioso sobre a presença dos estudantes portugueses na Universidade de Paris, e à publicação dessa obra não foi estranho o interesse cultural de Joaquim de Carvalho, visto que apareceu numa coleção por ele dirigida. Não obstante, apesar do valor das pesquisas de Luís de Matos, continua a ser indispensável, para poder dominar

Ricamente a problemática das relações culturais portuguesas com a Europa durante o reinado de D. João III, a leitura desta síntese sobre o nosso Humanismo.

 

No derradeiro capítulo, enfim, resume o autor, em termos de clareza metodológica inexcedível, a lição de toda a pesquisa erudita até então levada a cabo, na que respeita à importação do Humanismo para o nosso país. De Clenardo a André de Resende, dos impressores aos cosmógrafos, nada esquece quem debuxou estas páginas com toques leves e ao mesmo tempo seguros, numa dissertação tão douta como fascinante. O problema religioso é abordado com a delicadeza e a mestria de alguém que, não obstante a sua cultura laica, não é hóspede, pelo que respeita a um conhecimento muito sério, da teologia do Renascimento. Assistimos ao nascer da Companhia de Jesus, que dir-se-ia ter surgido no próprio foco do Humanismo, com a vocação de o expandir, adquirindo um novo espírito mas respeitando os antigos métodos, através de todos os povos da Terra. “O que torna inconfundível e sem par a sua obra, é a confiança na Natureza e no Homem, e pelo desenvolvimento da consciência, a projeção prospetiva”. Não era possível definir melhor o programa do Humanismo.

O estudo sobre Leibniz é, que saibamos, a primeira pesquisa de síntese elaborada em Portugal acerca da sensibilidade do grande filósofo ao pensamento português da Segunda Escolástica, principalmente às Instituições Dialéticas de Pedro da Fonseca. Mas Leibniz, como prova o investigador, também conheceu a obra jurídica de António de Gouveia e o Quod nihil scitur de Francisco Sanches, cuja orientação gnosiológica lhe não foi estranha, ainda que não em concordância. Teve igualmente notícia dos escritos humanísticos de D. Jerónimo Osório, que circulavam por toda a Europa, e não desconheceu o que os Portugueses fizeram pela divulgação da civilização oriental, sobretudo chinesa, assim como as congeminações matemáticas e náuticas de Pedro Nunes, uma das quais editada frequentemente com o texto de Sacrobosco.

 “Leibniz — escreve Joaquim de Carvalho — colheu na nossa literatura factos, ideias e possivelmente sugestões; a inteligência portuguesa colheu na sua obra o que mais importa à atividade intelectual: alento especulativo, problematicidade incitante, ideias normativas”. Na última parte do seu ensaio refere-se Joaquim de Carvalho aos autores portugueses que mais abertos foram à influência do filósofo germânico, de Jacob de Castro Sarmento a Luís António Verney e a Silvestre Pinheiro Ferreira, em pleno florescimento do nosso pensar iluminista, talvez não muito original mas certamente renovador. Esta parte do seu ensaio é mais alusiva do que discursiva, pois disserta-se acerca do que há de específico no pensamento leibniziano, começando pela conhecida teoria da mónada, cuja sugestão foi porventura colhida nalguns textos do pensamento pré-socrático. Dir-se-ia que o autor analisava Leibniz pensando no que, da sua obra, transbordou para a cultura portuguesa: além da referida teoria, a “continuidade e correlação de todos os estados do Universo em cada instante, conciliação da razão e da fé” — “tais são as teses leibnizianas que até agora vimos ser de mais profundo sulco entre nós”. E o Mestre de Coimbra termina o seu arrazoado com evidenciar o que, num pensador como Antero de Quental, também existiu de orientação leibniziana, ainda que se trate já de um “vinco leibniziano com a noção de força como energia atual”, endereço ontológico e metodológico que também algo deve à monadologia, que o nosso poeta-filósofo leu e meditou.


?>
Vamos corrigir esse problema