A livraria de um letrado do século XVI - Fr. Diogo de Murça

Ao Prof. Alphonse Roersh, historiador dos humanistas belgas e sábio editor do epistolário de Nicolau Clenardo, com afetuoso reconhecimento.

O códice manuscrito da Biblioteca da Universidade de Coimbra onde se contém a Memoria dos estudos, em que se criarão os monges de S. Jeronymo, e suas mudanças desde o tempo da sua fundação em Portugal, athe o feliz reynado do Fidelissimo Siír Rey D. José o primeyro que Deos guardetermina com uma peça independente, sob o título: Inventário dos livros, que se acharão no Collegio de S. Bento de Coimbra em huns cofres, por morte do P. Fr. Diogo de Murça, e tinhão vindo da Costa; mandados entregar ao Collegio de S. Jeronymo de Coimbra pelo Sñr Rey D. João o 3.° e depois de sua morte pela Sñra Rainha D. Catherina.

Trata-se de uma cópia do século XVIII, sem qualquer indicação externa da sua proveniência, oficial ou particular. A ausência dos elementares requisitos de crítica externa torna legítimas as suspeitas. Não hesitamos, contudo, em lhe dar crédito, por considerações de crítica interna e pela circunstância de se encontrar aditada a uma Memória cuja exação e fundamentos documentais afiançavam a sua fidedignidade —, e porque assim pensamos, também não hesitamos em lhe dar publicidade, com algumas anotações, em 1927, sob o título que encima estas páginas.

Passados dez anos, apareceu a público outro rol da livraria de Fr. Diogo, que, apesar das diferenças, de algum modo garantia a autenticidade do que havíamos publicado. Dera-o a conhecer o Dr. Mário Brandão, na coletânea de Documentos respeitantes à Universidade de Coimbra na época de D. João III, (Coimbra, 1937), como recibo de quitação, passado em 26 de Fevereiro de 1566 por Fr. Heitor de Monforte, procurador do Convento de Penha Longa, da entrega pela parte de D. João [Pinto] administrador do Mosteiro de Refoios e do Colégio de S. Bento, de Coimbra, e por Gonçalo Pinto, testamenteiro de Fr. Diogo de Murça, um e outro sobrinhos deste sacerdote, dos “livros que ficaram do padre Fr. Diogo de Murça que Deus haja professo do dito convento de Penha Longa, por lhe serem julgados por seus em a Mesa da Consciência”.

Como cumpria, o recibo exarou a relação dos livros, por forma que possuímos atualmente dois róis organizados depois do falecimento do famoso reitor da Universidade de Coimbra. Ambos são sumaríssimos, feitos por mero intuito legal, tão sumários que em numerosos casos não é possível reportar as indicações aos títulos dos livros e, ainda menos, às edições a que respeitam. Grande parte dos livros do rol do recibo de quitação coincide com o inventário dos livros achados nos cofres, mas há muitos que são diferentes e, sobretudo, as duas relações divergem no número: o rol indica 94 números e o inventário 284.

Qual a origem da livraria e como explicar a existência das duas relações?

Não chegou até nós o testamento de Fr. Diogo, se é que o redigiu, e não sabemos de quaisquer outros documentos que esclareçam cabalmente o caso.

Apenas se desvendam algumas conjeturas, afigurando-se como mais consistente a que relaciona a origem com a escolaridade de Fr. Diogo em Paris e em Lovaina, o desenvolvimento ulterior deste núcleo inicial com a sua situação de regente do Colégio da Costa e, mais tarde, de patrono de estudos em Coimbra, durante o seu reitorado, e a dualidade de róis com as demandas e controvérsias que a ordem hieronimita sustentou contra a aplicação de propriedades e de rendimentos feita por Fr. Diogo.

Com efeito, é sabido que pouco depois do regresso (1533?-1534?) a Portugal pôde Fr. Diogo organizar um colégio no mosteiro de Penha Longa, em 1535. Foi a primeira casa de estudos privativa da congregação — possuíam desde 1517 com os dominicanos o Colégio misto de S. Tomás, em Lisboa —, e esta casa foi tão favorecida pela proteção real que logo contou entre os escolares D. António, o futuro Prior do Crato, e o Infante D. Duarte, filho de D. João III. Em 1537 foi este Colégio trasladado para o mosteiro da Costa, a par de Guimarães, continuando Fr. Diogo como regente e principal dos estudos, até que em 1543 veio ocupar a reitoria da Universidade de Coimbra. Instalado no Paço das Escolas, aqui viveu com alguns colegiais hieronimitas que não tinham alojamento na nova fundação do Colégio dos dominicanos, conseguindo de D. João III, em 1550, que o Colégio da Costa fosse transferido para Coimbra, dando origem ao futuro Colégio de S. Jerónimo. Nestes empreendimentos aplicara Fr. Diogo rendas e, ao que parece, propriedades da Congregação como se seus fossem, pelo que se originaram demandas e controvérsias que terminaram em 1562 com a concórdia estabelecida pela rainha D. Catarina entre a ordem de S. Jerónimo e o P. D. João Pinto, sobrinho de Fr. Diogo e seu sucessor na administração dos colégios e da comenda de Refoios.

Todos estes acontecimentos e incidentes, que sumarissimamente resumimos da já resumida Memória dos estudos em que se criaram os monges de S. Jerónimo, estão a solicitar a investigação, pelo socorro que prestam à história pedagógica e à da constituição da livraria que Fr. Diogo formou, ao que parece com fronteiras mal delimitadas entre a propriedade individual e o uso comunitário dos seus irmãos de hábito. Apurá-los, se acaso é possível, consumiria talvez muito tempo e, sobretudo, desviaria o sentido da nossa investigação para um campo, de certo modo, marginal e secundário; por isso, as páginas que seguem se ocuparão apenas do significado histórico-cultural desta livraria, em especial relativamente ao erasmismo e à controvérsia antiluterana.

Fr. Diogo Guedes (ou Pinto) professou em 1513 no mosteiro hieronimita de Penha Longa (Sintra), adotando desde então o apelido da sua naturalidade, Fr. Diogo de Murça, como era usual entre os professos de S. Jerónimo. Penha Longa foi a primeira casa que os jerónimos tiveram em Portugal, nos derradeiros anos do século XIV, e quando Fr. Diogo nela vestiu o hábito estava a congregação no rápido e fulgurante período de prestígio e de preponderância de que são entre nós luzeiros o mosteiro de Belém e o convento de São Marcos.

Estas admiráveis construções não se explicam sem a opulência da Ordem e as larguezas do tesouro real, mas não se compreendem sem a irradiação afetiva de novas conceções estéticas.

Das congregações religiosas anteriores à Contra-Reforma, os jerónimos foram os mais isentos de preceitos e diretivas intelectuais. Congregação puramente peninsular, foi profundamente adicta à Coroa, e em especial à pessoa de D. Manuel e de D. João III, que a cumularam de riquezas e de prestígio. A regra era severa, mas se escandia o tempo no serviço do coro, não mortificava o corpo nem enleava o espírito. Sem a tradição artística que pesava sobre franciscanos e dominicanos, e, mais remota e profunda, sobre beneditinos e cistercienses —, recorde-se Alcobaça, cujo conjunto, do agro e das edificações, é acabada expressão plástica das conceções estético-religiosas de S. Bernardo os hieronimitas foram os primeiros a acolher os rasgos pedagógicos e os voos artísticos da Renascença, quer nas casas que lhes pertenciam, quer nas alheias, como em Santa Cruz de Coimbra, a cujo capítulo, como governador e reformador autoritário e tenaz, presidiu de 1527 a 1554  Fr. Brás de Braga (ou de Barros) (1484-1559), também professo de Penha Longa (1516) e primo coirmão do historiador das Décadas.

No amanhecer dos novos tempos, sobressaem alguns congreganistas das ordens predicantes no apostolado missionário, na parenética e no cultivo do saber tradicional; só os jerónimos, porém, parece terem prestado atenção e assimilado alguns dos novos rumos que despontavam e haveriam de configurar o século. A edificação dos primeiros alçados de arquitetura clássica, a introdução dos métodos pedagógicos de inspiração humanista, o cultivo dos estudos escriturários e patrísticos acompanhado de uma ponta de desdouro pela teologia escolástica tradicional, são coisas que pertencem ao ativo dos monges hieronimitas e em especial às duas grandes figuras que deram brilho e valimento à congregação: Fr. Diogo de Murça e Fr. Brás de Barros.

Solidários na orientação pedagógica e na atividade renovadora do ensino das Artes, o nome de um e de outro é inseparável da história escolar de Coimbra, que em grande parte lhes ficou devendo as janelas abertas para além dos Pirenéus. Profundamente portugueses, a sua obra de administradores tem a marca da dedicação leal ao soberano, de cuja política eclesiástica e pedagógica parece terem sido agentes em Coimbra; não obstante, pela formação do espírito e pela estrutura do saber teológico, foram, de certo modo, estrangeirados no Portugal do segundo terço do século XVI.

No vigor da mocidade, dobrados já os vinte, haviam partido para Paris, por volta de 1517, jornadeando juntos para juntamente estudarem Teologia. Começaram, como cumpria, pelo estudo das Artes e embora tudo se ignore acerca da escolaridade parisiense de um e de outro, é de crer que ambos tivessem frequentado o Colégio de Montaigu. Nenhum documento certifica o facto; não obstante, a análise dos catálogos adiante publicados inculca com evidência que Fr. Diogo de Murça acompanhou a produção literária de alguns dos mestres que ensinaram no famoso Colégio durante os anos — circa 1517-1527 — que esteve em Paris.

Ë um indício forte, e o indício adquire a densidade de uma conjetura plausível quando se atenta no facto do Colégio de Montaigu ter sido por então um dos colégios mais frequentados por bolseiros portugueses, até se instituir no de Santa Bárbara, em 1526, o mecenato das cinquentas bolsas e o zelo vigilante de Diogo de Gouveia, senior. Lá estudavam por estes anos Francisco de Melo e D. Martinho de Portugal, e a impô-lo concorriam, simultaneamente, a fundação das 1300 libras que D. Manuel concertara com João Standonck e cujos beneficiários nos são desconhecidos, a fama dos seus mestres, como Noêl Beda, João Mair e Jerónimo de Hangest, a confiança no seu ensino ortodoxo, escrupuloso e vigilante, e a própria organização interna, mais congreganista, ou antes seminarística, que propriamente colegial.

Se a análise dos catálogos sugere que Fr. Diogo frequentou Montaigu, pela circunstância de ter possuído livros de Noêl Beda, de Jerónimo de Hangest e de João Mair, e de ter prosseguido o estudo da Teologia em Lovaina, cujos mestres guardavam estreitas relações com Montaigu, designadamente Latomo, uma reflexão idêntica, de mais densa plausibilidade, impõe que ao currículo tradicional das Artes, que então se desenvolvia por dois anos e meio, acrescentasse o estudo da língua grega e, possivelmente, da hebraica. A existência de gramáticas e de livros gregos, a orientação escriturária que, como é plausível, informou a sua conceção metodológica da Teologia, e a reorganização do ensino das Artes no Colégio da Costa, paralela e de índole idêntica à de Fr. Brás em Santa Cruz de Coimbra, mostram iniludivelmente que Fr. Diogo, como seu companheiro de estudos, não devia ter sido hóspede na língua da Ática.

Concluído o curso das Artes, os dois irmãos de hábito iniciaram os estudos de Teologia, objetivo primacial, senão único, dos estudantes portugueses que demandavam Paris.

Deixaram então esta cidade por Lovaina, cuja Faculdade de Teologia tomara a dianteira na controvérsia antiluterana e usufruía o renome que a de Paris deixara perder nos meandros estéreis da argúcia dialética.

De Fr. Brás se diz que nela se graduou em Teologia, e se assim foi, talvez não tivesse ido além do grau de bacharel, pois estando já de regresso em Portugal em 1527, os seus estudos na Universidade lovaniense não poderiam ter acompanhado toda a carreira académica que culminava com o doutoramento.

De Fr. Diogo, pelo contrário, chegaram até nós algumas notícias, embora escassas e mirradas. É desconhecido o ano em que saiu de Paris e também se ignora o currículo dos seus estudos, mas sabe-se o bastante para dizer que a estadia em Lovaina ficou gravada na sua formação de teólogo e que coincidiu com a quadra em que a famosa Universidade do Brabante assinala uma das lareiras da nossa cultura quinhentista.

Nos anos em que lá viveu, alguns dos quais, no derradeiro pelo menos, sob o mesmo teto e à mesma mesa do seu patrono no doutoramento, o lente teólogo João Driedo, que por convictor meus o designa afetuosamente na epístola dedicatória (9 de Junho de 1533) do De ecclesiasticis scripturis et dogmatibus (Lovaina, 1533) a D. João III, teve de 1529 a 1531 a companhia de André de Resende, que no Urbis Lovaniensis et Academiae encomium deixou bem expresso o seu entusiasmo pela velha cidade brabantês, e em 1532 a de Damião de Góis, que aqui conheceu Goclénio, Rescius e Barlandus, mestres no Colégio Buslidiano, o poeta Cornelius Musius, o insigne Luís Vives e o teólogo João Driedoens.

A Universidade deu-lhe ensejo de criar relações, senão amizades, como a de Nicolau Clenardo, que decorridos poucos anos hospedaria de passagem, em fins de Agosto ou princípios de Setembro, no Mosteiro da Costa, formou-lhe o espírito, orientou-o doutrinalmente, como é de crer, nos debates teológicos e honrou-o, por fim, com o grau de doutor, cujo bonnet recebeu com a costumada cerimónia em 27 de Maio de 1533, depois da admissão ao grau de licenciado em 29 de Setembro de 1530.

O doutoramento é a única credencial do seu saber, e porque nada deixou escrito que permita cingir com alguma segurança a posição teológica que assumiu, os catálogos adiante publicados constituem valioso indício da sua formação intelectual e das suas tendências doutrinais.

Como tantos homens eminentes, a quem as circunstâncias não proporcionaram as condições propícias ao recolhimento da atividade literária ou impuseram que consumissem o vigor no desempenho do serviço público, de índole tanto mais digna quanto menos individuada, Fr. Diogo de Murça só é recordado por documentos oficiais, por atos de gestão e pelo testemunho de contemporâneos. Uns e outros são unânimes em dizerem que o seu prestígio social e a sua ação pedagógica só são compreensíveis em quem usufruiu claros dotes de inteligência e alcançou o saber que ilustra e encaminha.

Como reorganizador do ensino pôde escrever com informação exata o memorialista dos estudos na sua ordem, que Fr. Diogo foi quem “propagou entre nós [os jerónimos] o conhecimento das línguas orientais; o primeiro que nos leu dentro no claustro as Artes; escolhendo da Filosofia de Aristóteles o que nos podia ser útil para os estudos sagrados; ensinando-nos a buscar a inteligência daquele Filósofo nas suas mesmas obras escritas na sua língua primitiva, e dirigindo a nossa aplicação à boa Teologia, pelas suas legítimas e puras fontes, indicadas por São Tomás, que propunha como norte das conclusões cristãs, tiradas daqueles princípios, ou fontes da Religião, e da sua verdadeira doutrina e inteligência”.

Só quem possuísse saber compreensivo e largueza de vistas poderia lançar-se no caminho de tantas inovações e reformas, e, com efeito, os catálogos adiante publicados mostram claramente que Fr. Diogo acompanhou o movimento renovador do estudo das Humanidades e seguiu com interesse as questões teológicas que incendiaram as escolas de Paris e de Lovaina.

Uma livraria é sempre, pelo menos, o espelho das curiosidades de espírito de quem a organiza e dispõe. A de Fr. Diogo não se furta à regra.

Duas coisas ressaltam imediatamente: a escassez de livros de Teologia escolástica e mística, de Filosofia e de Lógica no sentido tradicional, tanto na via dos nominalistas como na dos realistas e dos ecléticos, e, em contraste, a abundância de obras de Padres da Igreja, de estudos escriturários, de escritos de controvérsia bíblica e dogmática, e de edições de Erasmo.

Não desconheceu Duns Escoto (v. n.ºs CCXXIII e CCL) e estudou certamente S. Tomás de Aquino (n.CCXXV e CCXXVII), cujo pensamento de teólogo e de comentador de S. Paulo veneraria com respeito; não obstante, impõe-se irresistivelmente a ideia de que substituiu a meditação filosófica e teológica, no rumo tradicional, pela investigação heurística, pela exegese escriturária e pela história eclesiástica. Para quem assim orientava o espírito, ao ritmo dos tempos que vivia, e tendo diante dos olhos e do coração a lição literária de S. Jerónimo, a argumentação puramente dialética tinha de ceder o lugar ao estudo das línguas sábias, do latim, do grego e do próprio hebreu. Por isso se nos deparam alguns dos manuais característicos da nova didática das Humanidades, a obra dos escritores gregos e latinos nas respetivas línguas originais, a variedade impressionante dos escritos de Erasmo.

Até onde chegou este interesse pela antiguidade clássica e a admiração pela obra do príncipe dos humanistas?

A resposta só pode ser conjetural. Inclinamo-nos, não obstante, a pensar, tendo em consideração o conjunto da livraria de Fr. Diogo, a índole das escolas de Paris e de Lovaina no tempo em que as frequentou, as intenções que transparecem da sua ação de pedagogo e a orientação que parece ter informado os seus atos de reitor da Universidade, que os olhos do nosso doutor lovaniense não leram as letras clássicas com a intenção de lhes admirar a beleza formal ou a transparência das ideias racionalmente fundadas. A sua mentalidade foi a mentalidade de um teólogo formado no mais aceso da controvérsia antiluterana, a cuja índole repugnariam visceralmente o estetismo e a tendência racionalizante para a laicização dos saberes e, sobretudo, da interpretação da Sacra pagina. Não discriminaria, como alguns alvoroçados modernistas, a aplicação às letras sagradas do estudo das letras profanas situando as raízes de cada uma delas em mundos diferentes da atividade espiritual. A posse das línguas sábias valeria como instrumento, não como fim autónomo. Servia, acima de tudo, para apreender diretamente os testemunhos mais antigos do ensino de Jesus Cristo e para proporcionar argumentos filológicos à controvérsia escriturária; por isso, Fr. Diogo associara no Colégio da Costa os estudos recentes das Humanidades ao curso tradicional baseado no magistério das Sumas de S. Tomás de Aquino.

A conceção das línguas sábias como instrumento necessário para penetrar na intimidade do Cristianismo primitivo constituíra um dos tópicos mais salientes do evangelismo parisiense. Fr. Diogo podia tê-la apreendido inicialmente, já diretamente nos comentários de Lefèvre d'Etaples aos Evangelhos (vid. n. 8 e CCLIV) e às epístolas de S. Paulo (vid. n.º 23), já indiretamente, na censura de Noël Beda (vid. n.º 19) a estes escritos. A controvérsia apaixonou, sem dúvida, o jovem estudante de Teologia, mormente se, como supomos, ouviu os mestres de Montaigu; mas os catálogos dos seus livros sugerem também que foi na obra de Erasmo que seguiu o desenvolvimento desta ideia, em profundidade e em extensão, para afinal assentar, como é de crer, na posição eclética do seu mestre de Lovaina, João Driedo, de Turnhout.

A escolaridade de Fr. Diogo em Paris e em Lovaina coincidiu com a pujança da atividade exegética de Erasmo —, e também com o renome e a fogueira de paixões que ela ateou. A edição do Novo Testamento (n.º 42), as Paráfrases às Epístolas (1521) e aos Evangelhos (n.º 43), os comentários aos Salmos (n. 60, 74, 75, 76) testemunham o interesse de Fr. Diogo pela atividade escriturária de Erasmo, concorrendo todas as circunstâncias para impor a opinião de que possuiu também as edições erasmianas dos Padres — S. Jerónimo (1516 e 1526), S. Cipriano (1521), Santo Hilário (1523), Santo Ireneu (1526), Santo Ambrósio (1527) e Santo Agostinho (1529).

Até onde chegou a admiração por Erasmo? Estaremos, porventura, perante um sequaz do seu método exegético e das suas opiniões escriturárias, ou, pelo contrário, de um antagonista que quis ter junto de si os escritos erasmianos para mais comodamente os poder criticar e mais avisadamente impedir o alastramento das ideias que expunham?

É impossível qualquer resposta categórica com os elementos atuais. Sob certos aspetos, Fr. Diogo apresenta feições de erasmista, designadamente no desapreço da teologia escolástica, na amplitude das leituras patrísticas, na preferência da exegese escriturária, na unilateralidade dos estudos bíblicos, limitados, a bem dizer, ao Novo Testamento, e do Antigo Testamento, aos Salmos. Todos os Padres editados por Erasmo aparecem na livraria de Fr. Diogo, e o facto, compaginado aos demais, testemunha claramente o abandono do método lógico, tradicional na Escola, pelo método crítico introduzido pelos humanistas.

Escreveu o insigne autor do Erasme en Espagne, Marcel Bataillon, que os espanhóis contemporâneos de Fr. Diogo não veneravam em Erasmo o humanista, porque procuraram acima de tudo nas páginas das Paráfrases do Novo Testamento e dos Salmos e nas do Enchiridion “o intérprete do Cristianismo mais essencial e interior”.

Tudo indica que Fr. Diogo se não furtou à influência deste sentimento bastante generalizado; no entanto, é vedado afirmar que, sob a influência do Enchiridion militis christiani, que andava nas mãos de toda a gente, e sobretudo do prefácio ao Novo Testamento (n.ºs 42 e 44), publicado autonomamente (1518) com o título expressivo de Ratio seu methodus compendio perveniendi ad veram theologiam, Fr. Diogo tivesse admitido a conceção erasmiana da insuficiência da Vulgata. Nada autoriza tal opinião, e até é crível, pelo contrário, que a repudiasse como filho espiritual de S. Jerónimo e não hesitasse mesmo em subscrever a sabida recriminação de Lutero, quando disse (1533) que não havia artigo de fé, por mais confirmado pelo Evangelho, que pudesse escapar à censura de Erasmo, ou por outras palavras da razão — ab Erasmo, id est a ratione. Mas se não estamos em condições de julgar intrinsecamente e com segurança as opiniões de Fr. Diogo sobre as inovações exegéticas de Erasmo, sobram-nos, pelo contrário, os testemunhos de que possuiu a maior parte dos livros em que elas foram expostas.

Em Paris, Fr. Diogo viera encontrar inovadores, que defendiam a primazia do estudo da Escritura e dos Padres, e tradicionalistas, mais ou menos fiéis às conceções e aos métodos da teologia escolástica. Sem qualquer indício da tenção com que foram adquiridos e lidos, os seus livros mostram que, se conheceu os principais escritos exegéticos de Erasmo também não ignorou os de Noêl Beda (n.ºs 19 e 57), cujas maquinações anti-erasmistas junto da Faculdade de Teologia, de que era síndico, deveria ter acompanhado, embora apenas se aponte uma única peça da tenaz contenda (n.º 79).

Qualquer que haja sido o seu sentimento sobre a índole destes escritos, um ponto, no entanto, é indubitável: a formação teológica resolutamente antiluterana. Iniciou-a em Paris, ouvindo, como conjeturamos, João Mair e outros mestres de Montaigu e lendo as censuras de Judocus Clichtoveus (n.º 10) e de Jerónimo de Hangest (n.º 78), mas foi na Faculdade de Teologia de Lovaina que ela se firmou e robusteceu. A licenciatura e o doutoramento (27 de Maio de 1533) na escola que então ia na dianteira da controvérsia com os Reformados representam a garantia oficial da sua formação teológica ortodoxa. É. tudo o que de seguro se pode dizer, porque quando se quer desvendar a posição que Fr. Diogo tomou perante os métodos e os problemas que diferençavam as correntes teológicas coetâneas só se encontram vaguíssimas conjeturas, por não haver chegado até nós qualquer testemunho, direto ou indireto, do seu pensamento.

Durante estes anos, é de crer que no Colégio de Busleyden, o famoso Trilingue ou buslidiano que serviu de norma ao Colégio de França (Paris), tivesse aprendido o hebreu na classe de João Campensis (c. 1490- -1538), juntamente com André de Resende, e na Universidade ouvisse, pelo menos, as lições dos teólogos Ruard Tapper (1487-1559), de Jacques Masson (Iacobus Latomus, senior, c. 1475-1544) e de João Nys ou Driedoens († 1535), dado que eram cinco as cátedras teológicas.

Ignoramos as matérias que estudou e os textos explicados. A carência de informes é, por assim dizer, completa; não obstante, tudo concorre para sugerir que teria associado o comentário tradicional das Sentenças de Pedro Lombardo ao estudo moderno da Escritura, especialmente do Novo Testamento e, sobretudo, de alguns Padres. A variedade de escritos existentes na sua livraria sobre S. Paulo e em torno da obra e do pensamento de S. Jerónimo inculcam que os temas paulinianos e exegéticos, assim antigos, como os da controvérsia de Santo Agostinho com S. Jerónimo, como coetâneos, especialmente os levantados por Erasmo em relação à Vulgata, constituíram assuntos predominantes do seu estudo. A esta razão, outra acresce: a orientação doutrinal dos seus mestres de mais nomeada: Látomo e Driedo.

Jacques Masson, ou Latomus, à moda dos humanistas, insistiu nos perigos da exegese, sustentando contra os Reformados que o estudo da Bíblia só deve iniciar-se após o conhecimento doutrinal do credo católico. No De trium linguarum et studii theologici ratione, que deu ao prelo em 1519, em Antuérpia, e Fr. Diogo devia ter conhecido, embora não apareça nos catálogos, adverte contra erasmizantes e humanistas que a universalidade da mensagem evangélica não pode estar vinculada às expressões de uma língua.

que a universalidade da mensagem evangélica não pode estar vinculada às expressões de uma língua. A scientia rerum não se identifica com a scientia vocum, tanto mais que os conceitos são anteriores aos termos que os exprimem e a gramática estuda; por isso, ao lado de uma teologia popular, que recorre ao préstimo das palavras, há uma teologia especulativa ou espiritual, que ocupa o verdadeiro primado na inteligência dos mistérios divinos.

Como Látomo, Driedo sustenta também que o Evangelho é um credo antes de ser um texto, e, por consequência, a hermenêutica doutrinal precede e prevalece sobre a exegese filológica e a interpretação histórica.

A Bíblia e a Igreja constituem um só todo, orgânico e inseparável, — não se cansa de afirmar, provar e opor às proposições de Reformados, ao longo das densas páginas do De ecclesiasticis scripturis, mas tal indissolubilidade não quer dizer que só seja legítimo o argumento doutrinal e se condenem os argumentos bíblicos e os argumentos exegéticos colhidos na obra dos Padres. “Muito versado, segundo o testemunho de Erasmo, na teologia escolástica, Driedo exige, escreve Polman, que se estudem em primeiro lugar, os Padres para se alcançar o convencimento de que estes se opõem claramente aos inovadores alemães, e em seguida os doutores da Escola, para se verificar que as doutrinas daqueles são ordinariamente expostas sob falso aspeto”.

A estadia de Fr. Diogo em Lovaina coincidiu, em parte, com o desenvolvimento da fase inicial da luta da Faculdade de Teologia contra Lutero —, a primeira das Faculdades católicas a condenar publicamente, em sessão de 7 de Novembro de 1519, publicada em Fevereiro de 1520, um grupo de teses extraídas de sermões e de escritos luteranos relativos às indulgências e ao poder pontifício. Podia, acaso, o nosso compatriota pensar diversamente dos seus mestres, sobretudo de João Driedo, o patrono que o apadrinhou no doutoramento e cujo De ecclesiasticis scripturis, voltamos a repeti-lo, contém o rasgado elogio do discípulo, que ele apresenta a D. João III como “Sacrae Theologiae professor eximius”?

Não é crível, e embora nada saibamos de concreto sobre as suas ideias, os catálogos adiante publicados sugerem irresistivelmente que permaneceu fiel ao “método lovaniense”, reconhecendo que se o Credo prevalecia sobre a letra e estava indissoluvelmente ligado à Igreja, também reconhecia que o combate às conceções reformistas exigia novos argumentos que cumpria arrancar às páginas dos Padres da antiguidade cristã e se não encontravam nos meandros dialéticos das Sumas dos Doutores medievais.

Fr. Diogo fez-se homem em tempos de contendas e de refregas, quando a síntese que dera alento e firmeza à vida espiritual da Idade Média parecia desmoronar-se com as brechas abertas pela crítica textual, introduzidas pelos humanistas, pelo desencanto das abstrações, proclamado pelo nominalismo, pela hermenêutica e dissidência de Reformados, pela ambição das ciências humanas terem, como a ciência divina, o seu lugar ao Sol, numa palavra, pelo surto coincidente do espírito crítico, da laicização da vida e da desdivinização da Natureza. O seu pensamento, contudo, não transigiu nem claudicou, porque o saber que o nutriu, desse pelo nome de humanidades clássicas ou pelo de exegese escriturária, teve o único destino de se endereçar e de se rematar na teologia ortodoxa.

Hieronimita no hábito, foi-o sem dúvida também na índole do saber e na estrutura da conceção teológica. Se Fr. Diogo rezou perante a imagem do Santo doutor de Belém, cuja representação plástica nunca foi entre nós tão abundante e tão acabada, no desenho, na pintura e na estatuária, como nestes anos do grande século de Quinhentos, também podemos dizer que lhe venerou o espírito no silêncio da cela, seguindo submissamente o poliglota da Vulgata como patrono de humanistas.

Ciceronianus est, non christianus, dissera S. Jerónimo, e parafraseando o dito pregoara André de Resende na Ora tio pro rostris, proferida em 1534 na abertura da Universidade de Lisboa — Christianus sum, non ciceroniartus. Na densa concisão da paráfrase sente-se pulsar a sensibilidade religiosa do humanista perante o facto, talvez a seu ver irreparável, da cisão que os audazes do século cavavam entre as letras divinas e as humanas.

Fr. Diogo, mais teólogo e menos humanista que o seu antigo companheiro de Lovaina, não parafraseou nem comentou o pensamento do patrono do hábito que professara, por ver nele, como é crível, o guia das leituras clássicas, cuja lição de bom gosto ou de claridade intelectual sempre se haveria de conduzir sob o norte infalível do primado das letras divinas.               

RECIBO DE FREI HEITOR DE MONFORTE, PROCURADOR DO CONVENTO DE PENHA LONGA, DE COMO LHE FORAM ENTREGUES OS LIVROS QUE TINHAM PERTENCIDO A FREI DIOGO DE MURÇA. 26 DE FEVEREIRO DE 1566.


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