2. Irradiação do movimento revolucionário

«1º) Que foi hostil o procedimento dos diplomatas portugueses em negarem passaportes e despachos do estilo, não só aos navios mercantes nacionais e estrangeiros que se propunham seguir viagem para Portugal, mas também a diversos cidadãos portugueses que queriam regressar à sua Pátria;

«2º) Que devem ser removidos por terem perdido a confiança da Nação;

«3º) Que esta deliberação se transmita a el-rei, para ele os remover;

«4º) Que se deve esperar pela remoção, para então se declarar se se lhes deve formar causa.»

Compreendem-se os melindres da discussão do parecer e as delongas na deliberação. Não façamos a injúria de supor que o patriotismo do Soberano Congresso se acobardou perante as ignominiosas diligências. Não; mas o sentimento patriótico é uma coisa e o oportunismo das resoluções políticas outra, e antes do conhecimento do repúdio régio, as medidas que o Congresso votasse não seriam cumpridas pelos diplomatas e até poderiam significar uma espécie de desafio às grandes potências da Santa Aliança. Sem o apoio decidido da Inglaterra e da França, a intervenção militar na Península não era possível. O Congresso sabia-o; mas poderiam os deputados prudentes esquecer que na sessão secreta de 1 de Fevereiro, na véspera da convenção assinada em Laybach, que pôs à disposição do rei de Nápoles os soldados austríacos, se tinham contrariado as sugestões britânicas acerca da nossa política interna?

Fora o caso que o gabinete inglês avisara o governo português de que a tríplice aliança da Áustria, Prússia e Rússia resolvera não reconhecer nenhum governo revolucionário e declarar, pela circular de 8 de Dezembro de 1820, que urgia, em primeiro lugar, aniquilar a revolução de Nápoles. O perigo para os dois estados da Península era, pois, grande.

Ao fazer este aviso, o gabinete de Londres prometia ao Governo Provisional interpor a sua influência junto da Tríplice no sentido de Portugal ser poupado à afronta da intervenção, se o Soberano Congresso aprovasse uma Constituição moderada, a exemplo da Carta que Luís XVIII outorgara aos franceses, a qual D. João VI sem dúvida aprovaria.

Como se vê, a Inglaterra atuava simultaneamente no Rio junto do monarca, e em Lisboa junto do governo. No Rio, D. João VI tergiversara, até que os acontecimentos lhe impuseram a obediência passiva; em Lisboa, pelo contrário, o primeiro governo parlamentar que houve em Portugal, por intermédio do ministro dos Estrangeiros, apresentou ao Soberano Congresso, em sessão de 1 de Fevereiro de 1821, a qual começou por ser secreta, «um relatório em que, pintando fielmente o estado da Europa e dando conta da nota do ministério inglês, concluía pedindo que se adotasse aquela única via de salvação para o país, e se apartassem dele os horrores de uma guerra que não podia deixar de lhe ser mui fatal, desamparado como era de seu aliado». Esta comunicação foi ouvida em silêncio; a liberdade ficava assegurada adotando-se o meio nela proposto, de cuja estabilidade a Inglaterra se tornava garante, e é de crer que o quadro das desgraças que, a seguir-se um método contrário, choveriam sobre a Pátria, decidisse os deputados a partilharem as intenções do governo, se o deputado Barreto Feio e outros não se erguessem, clamando contra o que chamavam traição, e não incutissem o terror nos seus colegas, que, vendo o perigo de ir ao encontro dos clubes, cuja vontade era então omnipotente, preferiram um mal remoto, e que se lhes representou imaginário, a um mais próximo e que viam pendente sobre suas cabeças, como a espada de Dámocles; muito contentes por poderem desculpar-se com a ominosa cláusula de seus poderes, cláusula originada pelos sucessos de 11 de Novembro, de fazerem uma Constituição tanto ou mais liberal do que a de Espanha» (Sousa Monteiro, História de Portugal, t. VI, p. 185).

As condições políticas internas, o orgulho patriótico, o próprio decoro do Soberano Congresso, uma certa irritação anglófoba, concorreram para que a voz do bom senso, apesar do roufenho acento britânico, se não ouvisse então; o Soberano Congresso quis ser de facto soberano, e dotar a Pátria com uma Constituição ultraliberal, bela na fachada lógica, mas vazia de elementos vitais, à qual se não imputasse a nódoa da dedada forasteira.

Era talvez o dever individual dos deputados e o pundonor da Nação reclamava, porventura, o denodo da altivez; mas o dever e o denodo volveram-se em tragédia civil quando, dois anos depois, a intervenção francesa em Espanha desencadeou em Portugal a contrarrevolução, a Constituição caiu, desamparada pelos próprios que a votaram e lhe reconheceram tardiamente os defeitos, e o País inteiro começou a padecer as tribulações sangrentas da guerra civil, para afinal encontrar a paz numa fórmula política aparentada com a que Palmela, os moderados do centro, o primeiro gabinete parlamentar, a Inglaterra e a própria França, de política dúbia e versátil, sensatamente aconselhavam.

Forte com o acatamento dos povos, convicta de que iria instaurar um Portugal regenerado e digno, ao qual o rei se não sobreporia despoticamente, nem as potências afrontariam com o nuto de exércitos liberticidas, orgulhosa de concorrer para nova era política de concórdia entre as nações, de probidade insubornável mas ambiciosa de enriquecer os campos, as oficinas, os negócios, a revolução iria seguir o seu curso, curso desvairado, misto de demagogia e de academismo, mas patriótico nos ímpetos, português na índole, e galhardo nos sentimentos.


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