3. A obra legislativa das cortes

Na sessão de 8 de Março, o Soberano Congresso punha a última pedra nos alicerces da futura Constituição.

A disparidade das votações revela a ausência de agrupamentos partidários homogéneos, mas é fora de dúvida que a esquerda conquistara o comando da maioria, notadamente os seus leaders Fernandes Tomás, Borges Carneiro, Pereira do Carmo, Alves do Rio, Castelo Branco, Margiochi, Moura e Soares Franco. O rumo e o resultado das votações consagraram a revolução, e para que não houvesse dúvidas surgiu a proposta de as Cortes reconhecerem a necessidade e legitimidade das revoltas de 24 de Agosto e de 15 de Setembro. Trigoso procurou ainda separar a necessidade da legitimidade, mas, entre os aplausos da maioria, Alves do Rio clamava que os atos da «regeneração» «têm sido legítimos, foram legítimos e estão legítimos» e «os ilustres varões» que premeditaram e efetuaram aqueles «gloriosos feitos» foram declarados «beneméritos da Pátria e credores da sua gratidão».

Como acabamos de ver, a preocupação dominante do Soberano Congresso no primeiro período dos seus trabalhos foi o estabelecimento das bases da futura Constituição. A margem, porém, do momentoso assunto, por vezes como consequência lógica dos artigos que iam sendo votados, legislou sobre matéria política, social e económica.

Assim, decretou a amnistia aos crimes políticos desde 1807 (decretos de 15 de Fevereiro e de 22 de Março de 1821) e o perdão aos desertores (decreto de 17 de Março de 1821) e a certas categorias de criminosos (decreto de 22 de Março de 1821); aboliu as coudelarias (decreto de 22 de Março de 1821) e extinguiu o juízo de inconfidência (decreto de 12 de Maio de 1821), as leituras no Desembargo do Paço (decreto de 12 de Maio de 1821), juízos de comissão e administração das casas nobres (decreto de 19 de Maio de 1821), os privilégios de aposentadoria (decreto de 29 de Maio de 1821), o comissariado militar (decreto de 17 de Abril de 1821) e os ordenados, pensões, gratificações e propinas não estabelecidas por lei (decreto de 22 de Março de 1821).

Em matéria económica, por um lado afirmou a liberdade, extinguindo o privilégio da Companhia dos Vinhos do Alto Douro relativo ao exclusivo das aguardentes (decreto de 31 de Março de 1821), e permitindo a qualquer destilar, transportar e vender aguardentes, e por outro o protecionismo, proibindo a importação de cereais e farinhas (decreto de 5 de Maio de 1821), de azeite (decreto de 24 de Maio de 1821), de porcos (decreto de 29 de Maio de 1821), de vinhos e licores (decreto de 9 de Junho de 1821). Alguns destes decretos brotavam da nova conceção política do Estado e da sociedade, que tinham em mente; porém os decretos mais importantes, pelas suas consequências sociais e pelo divórcio que estabeleciam com o antigo regime, foram o da extinção dos serviços penais, o da permissão da liberdade de ensino e de abertura de escolas de primeiras letras sem dependência de exame ou licença (decreto de 3 de Julho de 1821) e o da abolição da Inquisição.

O decreto de 10 de Abril de 1821 foi a machadada mais funda que as Cortes vibraram na organização social do antigo regime. Por ele se extinguiram todos os serviços pessoais feitos pela própria pessoa ou com animais, fundados em foral, graça régia, posse imemorial, direito censual, dominical e enfitêutico, salvo os serviços dos cabeceiros e foreiros; os direitos banais  e os privilégios exclusivos de boticas e estalagens; as obrigações e prestações consistentes em frutos, dinheiro, aves ou corazis  impostos aos habitantes de qualquer povoação a favor de algum senhorio, e bem assim quaisquer privilégios graciosos que obstassem à livre navegação dos rios caudais e navegáveis; o privilégio chamado de relego, pelo qual a Coroa, donatários dela, ou quaisquer outros agraciados, tinham a venda exclusiva dos vinhos em certos meses do ano; e finalmente os privilégios exclusivos de algumas cidades e vilas, pelos quais nenhuma pessoa podia vender outros frutos ou líquidos, senão os produzidos nos seus próprios termos, enquanto os houvesse.

A extinção brusca de tantos privilégios, consagrados alguns por antigas tradições locais, feria os interesses e atacava sentimentos de conservação social. A reação dos atingidos não se fez esperar; em parte alguma, porém, eles tão violentamente como os monges cistercienses de Maceira Dão, que chegaram a impedir os povos de lavarem e pescarem no rio Dão, mandando-os espancar, «em sua presença e de seu mandado, e revestidos de algumas mais ferozes circunstâncias, qual a de segurarem pelos genitais a um que pescava nú, para o maltratarem e a seu pai, a ponto de estarem em perigo de vida e de conduzirem outro nú e amarrado com cordas de rede até ao mosteiro, e deste à sua cadeia, depois de o haverem forçado a passar a vau e às suas costas os frades que dirigiam aquele ato».

Este caso desencadeou no Congresso uma tempestade de protestos; chegou a propor-se (24 de Julho) a extinção do convento, mas a Regência, avocando o caso, ordenou a dispersão dos frades por outros conventos da ordem.

A abolição da Inquisição em todo o território português, votada por unanimidade em sessão de 24 de Março e publicada por decreto de 7 de Abril de 1821, foi uma resolução aplaudida com o maior entusiasmo. Em 1820, era apenas um espectro do que fora; sobrevivia, no entanto, lembrando um passado que a opinião ilustrada e liberal condenava. A iniciativa partiu do fleumático deputado Simões Margiochi, e a proposta encontrou o seu mais entusiástico defensor no inquisidor, cónego da Sé de Lisboa e deputado, José Maria Soares Castelo Branco — singularidade que bem revela o sentir geral. Abolido o tribunal, do qual se disse em Cortes que sentenciara à morte mil e quatrocentas pessoas, a Regência franqueou as portas dos cárceres ao público, que acorreu a visitá-los, não sem horror e manifestações de indignação em Lisboa e em Coimbra.

A desconfiança da atitude de D. João VI foi o sentimento dominante no Congresso durante a discussão e o radicalismo de certas votações, porque todos sentiam a necessidade urgente de colocar a Nação e o Rei perante as situações de facto. Por isso o Congresso e a Regência se apressaram em fazer jurar as Bases, para servirem provisoriamente de Constituição.

Uma classe houve, porém, que logo pagou ao Congresso na mesma moeda de desconfiança com que ele dotara o rei: os eclesiásticos. Compreende-se. Os constituintes não formavam uma parceria de ateus e de libertinos. Não hesitaram nunca em render preito sincero à religião, mas podia a classe sacerdotal esquecer a rejeição do foro eclesiástico, a abolição da Inquisição, a suspensão das admissões de noviços nas ordens religiosas e militares, salvo nos colégios conimbricenses de Cristo, São Tiago e Avis, a discussão sobre se a religião devia ser a única, a incontinência de linguagem a raiar por vezes na heresia, com que se verberava o fanatismo?

O alarme era justificado, e se é certo que a Regência procurou atalhá-la, tranquilizando o episcopado, não conseguiu em todo o caso removê-lo. Quando chegou o dia 29 de Março, destinado ao juramento das Bases, Lisboa iluminou, salvo o palácio da Nunciatura, cujas vidraças foram lapidadas pela populaça, «por não ter posto luminárias», e todo o funcionalismo jurou, excepto o patriarca. Os dois representantes supremos da Igreja em Portugal patenteavam, pois, uma atitude de reserva, de mau agoiro político. O futuro não estaria com eles?


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