3. A obra legislativa das cortes

O patriarca respeitara a determinação, delegando no seu vigário geral a convocação das autoridades eclesiásticas da diocese para delas receber o juramento, que depois prestaria perante o próprio patriarca; mas pessoalmente esquivou-se, passando a procuração ao principal Estêvão Teles da Silva para fazer o juramento em seu nome, com exceção dos artigos 10.0 e 17.° das Bases, pois pretendia que a censura eclesiástica admitida pelo primeiro daqueles artigos devia ser prévia e que a religião referida no segundo devia ser unicamente a católica.

A restrição não foi aceite, e no mesmo dia 29 resolveu a Regência que o patriarca saísse do patriarcado e se recolhesse ao convento do Buçaco.

O Congresso vibrou de indignação, e, declarando-se em sessão permanente, sob o sentimento de imprevisíveis ameaças, que Fernandes Tomás avolumara, manifestando a necessidade de «medidas para consolidar a segurança da Nação», decidiu por fim, por 88 votos contra 1, e condicional, que as autoridades e indivíduos que se recusassem ao juramento das Bases deixariam de ser cidadãos portugueses; e, por 84 votos contra 5, que quem deixasse de ser cidadão português deveria sair imediatamente do país. Nestes termos, o patriarca foi intimado, no convento do Buçaco, em 21 de Abril, a sair de Portugal, o que fez em fins de Maio, fixando residência na cidade francesa de Baiona.

No dia 28 de Abril soube-se oficialmente em Lisboa que D. João VI prometera jurar a Constituição que as Cortes elaborassem. O regozijo foi entusiástico. As desconfianças atenuaram-se; no entanto Fernandes Tomás, à cautela, ia declarando que não votava títulos ao rei. «Veremos como as coisas correm», dizia. «Então falaremos...». D. João VI não sabia o que jurara; quem garantia que no regresso à metrópole pactuasse com Sua Majestade Nacional, as Cortes?

Pelo reino começavam a correr boatos corrosivos, despontavam protestos, sentiam-se os rumores anónimos da instabilidade da situação política. Dizia-se de boca em boca, pelo povo, cujo mal estar económico era grande, que os constituintes recebiam diariamente, por artes sub-reptícias 7200 réis, em vez do vencimento legal de 4800, e alguns deputados, como Girão e Pereira do Carmo, não hesitaram em denunciar ao Congresso o desrespeito, senão desprezo, com que se manchava, com ditos e escritos, a sua patriótica missão. E como podia ser diversamente, se no Congresso se soltavam expressões violentas, quase de extermínio, a que não correspondiam aliás os atos decisivos, reveladores da força do poder!

A magistratura ouvira acusações terríveis, chegando Borges Carneiro a declarar ser urgente que o «inumerável exército que vive do sórdido e cruel mester de demandas fosse procurar outro modo de vida». O clero via-se desprestigiado, quando não ofendido nos sentimentos ou atingido nos interesses. A Companhia dos Vinhos do Alto Douro, potentado influente, sentia que lhe cortavam as sólidas raízes, e a Universidade de Coimbra, como instituição e na pessoa do seu Reitor, era maltratada, em insistentes acusações.

Sobre todos, governantes e governados, passadas as primeiras horas de delírio, pairavam as hesitações desconfiadas, aqueles sentindo por vezes que pisavam terreno movediço, estes vivendo no receio do amanhã. Mediante a inquietação deste sentimento, aliás congénito a todas as alterações políticas que brotam da paixão e do dinamismo futurista, se explicam a um tempo o delírio propagandista e a violência de certas decisões.

Quando o Congresso recebeu uma carta laudatória de Jeremias Bentham levou-se o conhecimento dela a todos os cantos, em português, em francês e inglês, para lhe conservar «a beleza da forma e a força da expressão», e quando as autoridades souberam que o bispo octogenário, D. Vasco José Lobo, residente em Vila Viçosa, se recusara a jurar as Bases, procederam com insólita violência. Constara haver dito que, no regresso ao reino, D. João VI destruiria a obra das Cortes, e logo se viu na recusa indício de conspiração. Sem respeito pelas garantias individuais, entusiasticamente votadas, o octogenário bispo foi transportado a Lisboa e encerrado na Torre de Belém, donde logrou sair, em 28 de Julho, após reiterados pedidos, para o convento de São Vicente de Fora.

No fundo talvez não se condenasse um homem; perseguia-se uma suspeita, e com a violência inerente à política suspicaz queria-se esmagar aquilo que alguns temiam e que estava na consciência de muitos: o sentimento da instabilidade e a esperança da reviravolta política.

Os factos que acabamos de apontar explicam em parte, as origens do descontentamento e como a contrarrevolução se ia alimentando no seio da própria revolução. Um acontecimento, porém, da maior transcendência política abafou a voz dos descontentamentos e dos protestos, apesar dos numerosos boatos em contrário: o regresso de D. João VI. A esquadra em que «o mais amado dos monarcas» regressou ao reino levantou ferro do Rio em 26 de Abril. A despedida foi dilacerante; o regresso entusiástico e cordial.

Durante a viagem aconselhavam-lhe uns a adesão aos princípios liberais, com recusa, porém, das reformas que ultrapassavam as concessões da Carta Constitucional francesa de 1815; outros, recomendavam-lhe que fundeasse nos Açores e daí propusesse às Cortes as reformas compatíveis com a dignidade da sua soberania, e o terceiro partido, escudando-se em Stockler (que aliás já havia sido preso) e na Santa Aliança, propunha a ida para a Terceira, fazendo da ilha a nova Vendeia donde se desferissem os golpes mortais contra os energúmenos revolucionários.

Sempre irresoluto, D. João VI encontrou-se no dia 3 de Julho no Tejo, em frente da Cordoaria. As Cortes estavam reunidas, e quase sem discussão decidiram que o rei desembarcasse no dia seguinte, ao meio dia, e não às quatro horas da tarde, como ele desejava, e votaram quatro decretos, profundamente significativos:

1º) Declarando e punindo como perturbador quem, desde o desembarque de el-rei, desse outros vivas que não fossem à Religião, às Cortes, à Constituição, ao Rei Constitucional e à Real família;

2º) Autorizando plenamente a Regência a tomar todas as medidas preventivas da ordem e segurança públicas;

3º) Determinando que se não conferisse nenhum emprego público a estrangeiros sem consentimento das Cortes, e que, enquanto não estivesse sancionada a Constituição, não poderia el-rei, sem o mesmo consentimento, remover os comandantes das forças de Lisboa, Porto e respetivas vizinhanças, bem como o intendente geral da polícia;

4º) Cometendo à Regência o dever de comunicar a el-rei, pela deputação que o fosse cumprimentar a bordo, a proibição de desembarque das seguintes pessoas, a fim de se não perturbar o regozijo público: conde de Palmela, conde de Paraty, os Lobatos, Tomás António de Vila Nova Portugal, Rodrigo Pinto Guedes, Targini, visconde do Rio Seco, monsenhores Miranda e Almeida, e João Severiano Maciel.

D. João VI sentiu em cheio a violência destes decretos; e quando no dia 4 entrou no Paço das Cortes, apesar das ovações delirantes da multidão durante a passagem do cortejo, ia visivelmente acabrunhado, apoiando-se no secretário João Baptista Felgueiras. A imaginação representava-lhe o cenário de um tribunal de sanguinários jacobinos. Vira diante de si o trágico fim de Luís XVI, como confessou mais tarde, e balbuciante, a meia voz, prestou o juramento que lhe exigiam, mas não teve ânimo para ler o discurso de resposta ao presidente do Congresso, que foi lido pelo seu autor, Silvestre Pinheiro Ferreira. O discurso desagradou profundamente aos partidários da soberania absoluta das Cortes, notadamente a passagem em que afirmava «que o exercício da soberania, consistindo no exercício do poder legislativo, não pode residir separadamente em nenhuma das partes integrantes do governo, mas sim na reunião do monarca e deputados eleitos pelos povos», e o remate em que el-rei prometia aos constituintes que os seus «ministros de Estado vos exporão sobre cada um dos objetos que se houverem de tratar, o que eu... entender que cumpre fazer-vos conhecer e observar...».


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