Livros de D. Manuel II- Manuscritos, Incunábulos, Edições Quinhentistas, Camoniana e Estudos de Consulta Bibliográfica

Pelos inventários conhecidos e, embora no começo, mediante o apuramento crítico das fontes dos conhecimentos e das citações bibliográficas, é hoje possível avaliar o recheio desta livraria. De modo geral, pode dizer-se que ela compreendia leituras espirituais, ou de edificação, escritos romanescos, livros de feição didática, isto é, de preceptiva moral e de diretório político, histórias e crónicas, designadamente a obra de Afonso, o Sábio. A par dos escritos de índole moral e política, “pera insinança dos prinçipes”, notadamente o De regimine principum de Egídio Romano, sem os quais se não compreendem com alguma clareza o sentido da responsabilidade e as ideias que orientaram a consolidação de uma dinastia que renovou a orgânica estatal, robusteceu os alicerces da autarquia política e deu ser e continuidade à gesta dos Descobrimentos, a qual haveria de sublimar-se com a da civilização do Ultramar, nenhuma outra ordem de conhecimentos alcançou o valimento da Astronomia, então mais ou menos entremeada de credulidades astrológicas e cuja pureza científica Pedro Nunes resgataria com o sentido exemplar da objetividade e com o fulgor racional das demonstrações.

Na fala que em Ceuta dirigiu aos fronteiros a quem confiava a defesa e manutenção da praça recém-conquistada, D. João I lembrou-lhes o “Regimento de Príncipes que muitas vezes em minha câmara ledes e ouvis”, segundo o informe de Zurara na Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, e, embora inéditos —até quando? —, também sabemos da existência das versões portuguesas do Livro de Mágica que compôs Juan Gil de Burgos e do Livro dos Juízos dos Astros, de Aben Ragel, feitas durante o seu reinado, esta última entre 1410 e 1412, das quais, conjugadas ao legado astronómico de Afonso, o Sábio, talvez possa vir a dizer-se com consistência crítica que estão para a fase da gestação científica das primeiras viagens de além-mar como as observações de Pedro Nunes à Esfera de Sacrobosco e ao livro primeiro da Geografia de Ptolomeu estão para a génese de algumas das suas explicações da arte de navegar e de Astronomia.

Bastam estes dois factos, aliás suficientemente significativos, para mostrar que a livraria real começou a ser com D. João I um organismo ao serviço da ilustração e do saber, que não de mero passatempo intelectual. Pode mesmo pensar-se que ela foi, de algum modo, condição teórica da grande empresa transfretana por ele iniciada, talvez com a intenção de estabelecer posições que precavessem o País contra agressões marroquinas, e que o Infante D. Henrique e seus continuadores haveriam de dilatar e de sublimar com a gesta dos Descobrimentos. Os escritos mais prezados pela gente culta da primeira metade do século XV, ainda presa à sensibilidade medieval mas já com os olhos virados para o alvorecer do novo gosto que despontava na Itália, tiveram eco de simpatia em Portugal. Os escassos documentos relativos à constituição do fundo da livraria real e, sobretudo, as ilações e implicações do apuramento crítico das citações literárias e das fontes das ideias são já suficientes para indicar a altura que atingiu, embora se esteja ainda distante do verdadeiro conhecimento, porque o estudo histórico-cultural do nosso século XV tem corrido a par do dos séculos XVII e XVIII no desinteresse dos investigadores.

Em 19 de Janeiro de 1483, D. Afonso V, que muito enriquecera a livraria real, concedia o privilégio da isenção de impostos para os livros que Guilherme de Montrete, Francisco de Montrete e Guido importassem e vendessem em Lisboa, porque “ao bem comum” convinha “em  nossos regnos aver muitos livros”.

Significam estes dizeres a consagração oficial da maravilhosa invenção da imprensa e do valor do livro como instrumento e veículo da cultura. A partir de então, a livraria real acrescenta aos manuscritos de pergaminho e de papel as páginas impressas com caracteres móveis, enriquecendo-se a um tempo quantitativa e qualitativamente. A livraria de D. Manuel I, que é notável, documenta ainda a coexistência do tradicional e do moderno, isto é, do códice manuscrito a par do livro impresso e das páginas medievais ao lado de algumas renascentistas, mas as aquisições de D. João III, seu sucessor, com serem muito mal conhecidas, é de crer que somente tivessem recaído sobre livros impressos e de significação contemporânea.

Com a invenção de Gutemberg, a livraria real perdeu muito do antigo alcance e préstimo que tivera no derradeiro século da Meia Idade; o livro tornou-se a um tempo objeto de leitura mais atraente, de divulgação mais fácil e de aquisição mais acessível. De pertença cara e rara que havia sido na época dos calígrafos e iluminadores, o livro apresentava-se agora como mercadoria relativamente módica na nova era dos impressores e calcógrafos. Daí, o multiplicarem-se as livrarias particulares, quase sempre de índole restrita, de harmonia com as predileções do possuidor e com o ditame da especialização dos saberes. A própria casa real não se furtou ao que foi e é, a um tempo, condição do progresso científico, que depende vitalmente da especialização que sabe confinar-se, e limitação do horizonte individual da Cultura, que se encurta e apouca sem as perspetivas das ideias gerais. Assim, D. João IV, tornou famoso o seu afã de musicógrafo insigne reunindo uma preciosíssima livraria de Música, e D. João V, de cujo mecenato bibliográfico não estamos suficientemente informados, é crível que tivesse acumulado valores em proporção jamais vista, a avaliar pela categoria intelectual e pelo número dos seus bibliotecários e catalogadores especializados.

O terramoto de 1755 reduziu a cinzas a maior parte dos tesouros da livraria real, advertindo-nos com terrível lição dos perigos inerentes à excessiva concentração de valores artísticos e bibliográficos em zonas que têm sido abaladas por sismos.

A partir de então, e mais precisamente, após o regresso de D. João VI, pouco se sabe por via documental acerca do desenvolvimento e das tendências da livraria real. Ë um dos muitos temas desconhecidos dessa terra incógnita que é o nosso século XIX. Não obstante, dois factos lhe proclamam o benefício e o valor: é o primeiro, a atividade de Alexandre Herculano durante o exercício do cargo de bibliotecário da Ajuda, e é o segundo, a publicação por D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos do Cancioneiro da Ajuda.

A breve e superficialíssima digressão que acabámos de fazer pelo contorno mais saliente da livraria real obedeceu ao intento de mostrar que podia abonar-se com o exemplo de alguns antecessores no trono o amor dos livros que aqueceu o exílio do último Rei de Portugal—ou, talvez mais propriamente, do último Rei dos Portugueses, dado o escrúpulo da sua consciência de Monarca Constitucional, sabedor do que valia e significava civicamente o juramento da Carta. D. Manuel II não foi, pois, o primeiro rei bibliófilo, mas temos por sem dúvida que foi o primeiro rei bibliógrafo e bibliólogo.

Nenhum outro se lhe compara sob tal razão. Dos reis que cultivaram as letras, não sofre comparação com D. Dinis nos dotes da criação poética, com D. João I, o didata do Livro da Montaria, na variedade do saber natural, com D. Duarte, o moralista do Leal Conselheiro, na subtileza e fundura da análise psicológica, com D. João IV, o campeão ardoroso e erudito da Defensa de la musica moderna contra la errada opinion del obispo Cirillo Franco, e até mesmo com D. Luís, o tradutor do Hamlet, de alma sensível à beleza literária e ao enlevo estético da Música, e cujo reinado para sempre simbolizará o senso escrupuloso de monarca constitucional, a quadra novecentista mais dotada de talentos multiformes e mais bem servida por capacidades políticas, o apogeu do Liberalismo como regime de convivência cívica e como conceção da vida e, acima de tudo, a alegria de viver que se desentranha como flor delicada e frágil da confiança no dia de amanhã e da satisfação inerente ao desafogo do espírito de iniciativa.


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