Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

Estas duas conceções assentam no dado da existência da Ciência constituta e pressupõem que somente pela metodologia científica se pode atingir o que nos seres naturais é cognoscível, mas a conexão da Filosofia com a Ciência pode ser pensada diversamente, isto é, não com os resultados da ciência constituída mas com as exigências lógicas que cientificam o pensamento. Assim entendido o problema, pode procurar-se-lhe a solução no estabelecimento de um princípio absolutamente certo, primeiro e incondicionado, que sirva de fundamento ao Saber. Foi o que Descartes exprimiu, ao escrever na segunda das Meditações Metafísicas que «Arquimedes, para tirar o globo terráqueo da sua situação e transportá-lo para outro lugar, pedia somente um único ponto que estivesse firme e imóvel; assim também eu terei o direito de conceber altas esperanças se for assaz feliz em achar somente uma coisa que seja certa e indubitável». Diversamente de Aristóteles, cujo filosofar começa normalmente com o repensamento dos antecedentes históricos do problema que o ocupava, as «altas esperanças» que Descartes concebia consistiam no refazimento ab ovo da arquitetónica da Filosofia, como se anteriormente ninguém houvesse filosofado. Para isso, careceu de estabelecer um «ponto de partida”que não fosse uma hipótese nem um postulado, mas um princípio incondicionado, cuja apoditicidade intrínseca, tendo em si mesmo a sua razão de ser, servisse de base inabalável à constituição de um sistema coerente de verdades que se encadeiam.

 

Esta conceção da Filosofia como pensamento que procura a rigorosidade «a partir de» e em ordem à constituição de um «sistema» de verdades exerceu e exerce uma atração sedutora, mas não foi a conceção de Husserl.

Como Descartes, o pensador das Investigações Lógicas também procurou um fundamento incondicionado à Filosofia, mas indagou-o com sentido diverso do filósofo das Meditações Metafísicas. A sua mente, prodigiosamente capacitada para o descobrimento de problemas e para a respetiva análise, não só se libertou da intenção sistemática, senão que foi hostil à conceção da Filosofia «a partir de» e, mais ainda, à de «sob o ponto de vista de». Anti-relativista, mas não anti-positivista, se por positivismo se entender o respeito total às próprias «coisas», tais quais se apresentam na imediatidade da intuição, a problemática de Husserl não radica na existência de uma substância incondicionada, que, como em Espinosa, funde urna ontologia e um saber absoluto, nem tão-pouco incidiu, como a epistemologia kantiana, sobre as condições que possibilitam o conhecimento cientificamente exato. Considerou que o objeto da Filosofia como ciência de rigor exigia o estabelecimento do método fenomenológico e a constituição de uma filosofia fenomenológica como ciência filosófica fundamental, cujas verdades pudessem ser indagadas continuadamente, por sucessivas gerações, e como que impessoalmente.

Estes objetivos arrancam a Filosofia aos devaneios arbitrários da subjetividade para a situarem em posição objetiva, ou em ideias existentes em si, pois como expressivamente diz na refutação do relativismo específico, o que é verdadeiro é verdadeiro absolutamente e em si, de tal sorte que a «verdade é uma e idêntica, quer sejam homens ou outros seres não-humanos, anjos ou deuses, os seres que a apreendam pelo juízo». Daqui, as reflexões de Husserl terem a majestade das grandes filosofias clássicas, mormente pela pretensão de reintegrarem o pensamento em certezas de universalidade racional. A explicitação deste ingente esforço comporta uma feição positiva, de instauração, que é a mais original e se tornou de influência decisiva, e uma feição negativa, isto é, de repúdio da problemática vigente na época em que a consciência reflexiva de Husserl retomou com originalidade a fundamentação do ideal da Filosofia como ciência de rigor. Apesar de ligadas íntima e indissoluvelmente, é esta última feição que importa considerar, dado as páginas da presente tradução terem principalmente por fim mostrar que o ideal da Filosofia autêntica se tem de constituir independentemente do ideal e dos métodos das ciências da Natureza e se não identifica com ideologias e conceções da Vida criadas fora das exigências da exatidão.

A juízo de Husserl, a situação da Filosofia na segunda metade do século XIX, em relação ao problema que o ocupava, encontrava-se sob a influição de duas consequências do sistematismo de Hegel: o enfraquecimento e a adulteração «do impulso da constituição de uma ciência filosófica de rigor».

Pensar a Filosofia como ciência de rigor é pensá-la corno «Filosofia absoluta», isto é, como indagação de verdades absolutas e que existam em si, e não como expressão de anseios e de satisfações humanas, e Hegel enfraqueceu esta condição do impulso filosófico-científico com a sua doutrina da legitimidade relativa de toda e qualquer filosofia para a respetiva época, dando ensejo ao «historicismo cético» e à «filosofia ideológica», «em geral anti-naturalística e por vezes até anti-historicista”mas desprovida da «vontade radical de ser doutrina científica». Demais, não só enfraqueceu esta «vontade radical”senão que deu ocasião a que o ideal próprio da Filosofia fosse adulterado pela subordinação ao ideal e métodos das ciências exatas. É que Hegel, pela audaciosa pretensão do seu pan-filosofismo, de deduzir racionalmente as determinações concretas do mundo natural, suscitou a reação do Cientismo e a supremacia do Naturalismo, os quais, fitando os olhos nos resultados inegáveis das ciências exatas, renunciam à indagação filosófica e se tornam céticos relativamente «a toda a idealidade e objetividade absoluta do valor, na ideologia e na filosofia».

O Naturalismo e o Historicismo, enquanto atitudes filosóficas que enfraquecem ou adulteram «a vontade radical”de pensar a Filosofia como ciência de rigor, são, pois, as duas orientações do pensamento contemporâneo que o filósofo carece de afastar do seu horizonte, por desatenderem a instância irrecusável da Filosofia ser pensada como ciência de rigor.

Por Naturalismo entende-se comummente a orientação que ou explica todos os acontecimentos somente por leis estritamente naturais, com exclusão do sobrenatural e do transcendente, ou considera os fenómenos psíquicos e morais explicáveis pelas categorias das ciências da Natureza. Os dois sentidos têm de comum a conceção da Natureza como todo unitário e indivisível, ontológica e categorialmente uno, sendo esta noção que Husserl tem em vista, ao dizer que o «Naturalismo resulta do descobrimento da Natureza como unidade do Ser no tempo e no espaço, segundo leis exatas naturais».          

Daqui, a mentalidade naturalista ver no mundo físico e no mundo humano somente Natureza, apreendida e explicada pelas mesmas categorias mentais; e porque a natureza que imediatamente apreende é a do mundo físico, essa mentalidade reduz a esta natureza tudo o que existe, admitindo que os fenómenos psíquicos são variações, paralelos ou epifenómenos dos fenómenos físicos. O materialismo popular, que considera o psíquico como secreção do orgânico, o monismo sensorial, de Ernest Haeckel, que atribui aos elementos últimos da realidade movimento e sensibilidade, a Energética, de Ostwald, segundo o qual somente existe uma realidade, a energia, de que a matéria, a eletricidade, o pensamento, etc., são modos, e o empiriocriticismo, sustentando com Mach o estabelecimento de um critério que se mantenha o mesmo quando se passa da fatualidade física para a psíquica, e com Avenarius que os problemas surgem e desaparecem por virtude de condições biológicas e psicológicas, exprimem por palavras diferentes as duas características da mentalidade naturalista, que Husserl designa de naturalização da consciência e de naturalização das ideias.


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