Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

Pode «lastimar-se» a separação, mas o filósofo tem de tornar partido, e o partido que Husserl tomou foi o único à altura da sua admirável e exemplar intransigência de racionalista, somente obediente às exigências do ideal da pureza e rigorismo científico. Como escreveu Enzo Paci, «Husserl si poneva il problema di una verità assoluta come un problema di vita o di morte, quasi che la sua mancata risoluzione implicasse la distrtuzione dell'essere e la fine della civiltà: una tale tensione per la pura verité de raison non la si può concepire se non in un'atmosfera in cui si fa sempre valere, tacita ma possente, l'esigenza ineminabile della verité de coeur. Husserl ha avuto dal destino la missione paradossale di difendere, in un mondo che stava sperimentando il crollo di tutte le mitologie razionolistiche, il valore supremo ed i diritti eterni della chiareza della ragione».

Não se leem, por isso, sem emoção, as páginas finais do presente livro, nas quais o processo da conceção diltheyana da «Filosofia das filosofias» e, de modo geral, o do ideal da Filosofia como conceção do Mundo e como ideário da Vida, é instaurado e conduzido com a responsabilidade de quem sente em jogo o destino da Humanidade e com a luz da convicção de que «só a Ciência pode trazer decisões, e estas são eternas».

O cepticismo implícito no Psicologismo, no Naturalismo e no Historicismo, e, de modo geral, em todos os ideais que não pensam a Filosofia como ciência de rigor, somente podia ser vencido por uma «ciência do radical», e a esta ciência chamou Husserl Fenomenologia. Vejamos, pois, sumariamente, em que consiste esta ciência, que o derradeiro período da Filosofia como Ciência de Rigor vaticinava, e a filosofia atual confirma, «abrir um campo imenso de trabalho e levar a uma ciência que, sem os métodos indiretamente simbolizantes e matematizantes, sem o aparelho das conclusões e provas, não deixa de chegar a amplas intelecções das mais rigorosas e decisivas para toda a Filosofia ulterior».

A investigação fenomenológica consiste na discriminação do que é dado imediatamente na consciência corno vivência (Erlebnis), isto é, como presencialidade vivida. A investigação não pressupõe uma consciência em si ou em geral nem tão-pouco um objeto extramental cuja entidade ou comportamento devam ser apreendidos pelo sujeito cognoscente. Os conteúdos da consciência vivente e atual, isto é, o sentido enquanto sentido e o pensado enquanto puro pensado, são os «fenómenos», isto é, o que aparece à consciência, cuja descrição exata constitui precisamente o objeto da Fenomenologia. Assim entendida, a Fenomenologia tem um significado profundamente diverso da hegeliana Fenomenologia do Espírito, que no pensamento do seu genial criador significava a desenvolução das fases pelas quais o espírito se eleva da sensação individual à razão universal; e a investigação fenomenológica que lhe é própria não se apresenta como investigação psicológica, no sentido experimental, introspetivo ou extrospetivo, nem tão-pouco transcendental no sentido kantiano, cujo método pressupõe a existência de algo cujas condições de possibilidade a priori são criticamente indagadas. Nas próprias palavras de Husserl, «a investigação precisa de ser dirigida para uma intuição essencial e científica da consciência, para aquilo que ela própria «é», na sua essência, e simultaneamente para aquilo que «significa» em todas as suas formas distintas, bem como para os modos diversos de ela... se referir ao concreto...».

Este passo indica os objetivos capitais da Fenomenologia, ou sejam a descrição do que a consciência é, isto é, dos atos psíquicos tal qual se dão à consciência, da intencionalidade inerente à consciência, visto a consciência ser sempre «consciência de algo», isto é, os atos psíquicos contêm intencionalmente um objeto que se lhes opõe, e do significado dos atos psíquicos, isto é, do sentido ou sentidos ontológicos que exprimem a partir das evidências com que se apresentam.

Os «dados» da consciência são, assim, considerados na sua imediatidade e a respetiva análise ultrapassa sem confronto possível os métodos que tradicionalmente colocam o sujeito cognoscente perante o objeto conhecido numa relação uniforme e sempre a mesma e as conceções que pressupõem uma só esfera do ser, isto é, se baseiam numa ontologia una, idêntica e comum a todas as ciências.

Na Ciência natural os «dados» da experiência são indagados, criticados e relacionados metodicamente em ordem à respetiva explicação. A mente coloca-se imediatamente perante a presença dos objetos, isto é, dos conteúdos da experiência, em ordem a indagar a respetiva legalidade, necessidade ou universalidade. Na Fenomenologia a atitude é outra. Não se tem em vista a explicação e não se pressupõe nem subentende a existência do eu considerado corno sujeito em si, nem a de coisas conhecidas ou a conhecer que sejam objetos em si.

Na epistemologia tradicional, a temática radica na relação do eu cognoscente e do objeto conhecido, que não só se distinguem senão que se opõem, e desenvolve-se nos problemas da origem, condições, certeza e limites do conhecimento. Mediante uma análise extraordinariamente profunda e rigorosa, Husserl mostrou que antes e fora desta relação, tida como primordial, existe um território vastíssimo de presencialidades e, por assim dizer, de estruturas e de níveis, que designa de Fenomenologia da Consciência.

Consequentemente, na Fenomenologia a mente assume urna atitude adogmática e puramente descritiva do que é dado imediatamente à consciência vivente (ErIebnis). Husserl não deteve a atenção sobre os estados psíquicos, enquanto fenómenos psíquicos ou relacionáveis com as respetivas condições físicas ou fisiológicas, nem tão-pouco sobre os objetos, enquanto seres cuja existência transcende a mente que os perceciona ou representa. A marcha da sua análise não seguiu nenhum destes caminhos, que são os caminhos do investigador científico, da Psicologia e das ciências em geral, e do epistemologista de sentido tradicional, porque aplica a todos estes temas e problemas a epoché, isto é, «coloca tudo isto entre parêntesis», como diz nas Ideias (§ 88).

Esta atitude, que violentamente reprime a tendência natural da mente cognoscente, assinala a primeira das grandes inovações da Fenomenologia de Husserl, pois não só mostrou a existência de um território até então inexplorado, qual é o da descrição da consciência pura e do que lhe é imediatamente presencial, senão que estabeleceu também a atitude metodológica adequada. Sem o propósito explicativo da Ciência natural e sem a indagação crítica das condições a priori, da metodologia transcendental, Husserl teve em vista descrever e analisar o que é dado imediatamente à consciência vivente, pondo, como dissemos, os objetos «entre parêntesis», como se estivessem fora do Mundo, e entendendo por objeto, como diz nas Investigações Lógicas (I, § 62), tanto o objeto real como o ideal, tanto uma coisa material como um processo, uma espécie ou uma relação matemática, tanto um ser como um dever ser.

Suspendendo os juízos de existência extramental e de valor, Husserl situava-se exclusivamente no mundo do pensado, em ordem a surpreender4he os múltiplos significados. A sua posição recorda a de Descartes no momento em que intuiu o cogito, ergo sum como resíduo último e indubitável, contra o qual nada pode o ceticismo. Somente neste momento, porém, porque Descartes logo passou do cogito para o cogitatum, isto é, da ideia para o ideato, e Husserl não saiu do mundo do cogito enquanto mundo da consciência pura, isto é, o mundo do que é imediatamente objeto da consciência e no qual se encontram os pressupostos que precedem e condicionam todo e qualquer juízo de existência. Assim entendida, a investigação fenomenológica conduz à apreensão do que é dado à consciência na sua primordial e imediata presencialidade, e o seu método consiste essencialmente em apreender e isolar os elementos primordiais e absolutos que estes dados encerram e mediante os quais se esclarecerão ulteriormente, e rigorosamente, as diversas regiões da realidade.


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