2. Noticia e análise de livros

Com efeito, às correlações estabelecidas por alguns historiadores, que haviam reconhecido, nos Opúsculos, como que o germe da lei dos três estados, da conceção da classificação das ciências e da posição epistemológica, o autor acrescenta novas e fundadas relações, que amplamente justificam a conceção desenvolutiva da filosofia de Comte, em profundidade e em extensão, a partir de alguns pensamentos nucleares da sua juventude. Assim, no respeitante à teoria do conhecimento, que “desde os primeiros momentos da carreira filosófica de Comte se delineou com toda nitidez”; à lei dos três estados e à classificação das ciências, sobre cuj as raízes faz penetrantes sondagens assim como acerca das relações da psicologia com a biologia e a sociologia; ao conceito, problemática e método da sociologia; à génese dos elementos constitutivos do que Comte designará ulteriormente de estática e de dinâmica social; à origem da “noção de diferenciação social, com um começo de classificação das formas de sociabilidade, além de uma perfeita noção dos efeitos da divisão do trabalho social”; à repulsa da introdução de juízos de valor na sociologia; aos conceitos de civilização, que para Comte tinha o significado antropológico de cultura, de Estado e Sociedade; à crítica ao determinismo geográfico; e à noção de planificação social.

A par das raízes destas conceções nota ainda o autor que os Opúsculos como que contêm argumentos contrários às acusações de Comte ser “evolucionista unilinear, perfeccionista ou melhorista, e otimista”.

As conexões que o autor estabelece com os Opúsculos são por vezes consideradas também em relação com o pensamento sociológico posterior a Comte, por forma que este seu livro, com ter acentuado predominantemente o carácter histórico-genético de algumas conceções comteanas, possui também, assim no texto como no desenvolvimento das notas, feição crítica e doutrinal do que considera ser a “volta a Comte” da sociologia contemporânea.

Não faltam na literatura brasileira páginas apologéticas e polémicas do positivismo, mas escasseiam, assim como em Portugal, as exposições imparciais do pensamento de Comte, sem outro intuito que não seja o da respetiva exposição e explicação nos limites da objetividade e da exatidão. Nesta escassa literatura de investigação direta nas fontes, de visão global e de tratamento desapaixonado, a tese sobre Augusto Com te e o Pensamento Sociológico Contemporâneo conquistou por direito próprio um lugar de primeira plana, conferindo a Evaristo de Morais Filho a obrigação de afirmar em novos trabalhos o seu saber e o seu talento.

9. Sob a presidência e por iniciativa do Prof. Miguel Reale, quando Reitor da Universidade de São Paulo, teve lugar na capital paulista, de 22 a 26 de Março de 1950, o Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia, de que estes volumes são relato e arquivo.

O programa abrangia o seguinte “ternário”: “Significado e sentido da cultura brasileira” (I); “Balanço das atividades filosóficas no Brasil” (II); “Terminologia filosófica em língua portuguesa” (III); “História da filosofia” (IV); “Metafísica e filosofia dos valores” (V); “Filosofia da cultura” (VI); “Teoria do conhecimento” (VII); “Problemas de lógica matemática” (VIII); “Filosofia da linguagem e semântica” (IX); e “Problemas de filosofia estética” (X).

Instalado o congresso, que fora convocado, como disse o Prof. Artur Versiani Velloso, “para uma revisão histórica do nosso passado filosófico e para uma estimação dos seus atuais valores, para relatar as causas, as antigas tradições muito nossas, que se perdem no tumulto da hora presente, tentando, numa 'instauratio magna ab imis fundamentis', avaliar as posições que ora assume a alta cultura brasileira”, a atividade dos congressistas repartiu-se em sessões plenárias e secções.

Nas sessões plenárias, em número de quatro, foram proferidas as seguintes conferências: “Reflexões sobre a objetividade da filosofia”, de Leonardo Van Acker; “Posição de Rui Barbosa no mundo da filosofia”, de Miguel Reale; “A significação do congresso”, de Pontes de Miranda, e “Acerca do ensino da filosofia no Brasil”, de Artur Versiani Venoso.

O Prof. Van Acker ocupou-se da objetividade na filosofia entendendo por tal o problema de saber se a filosofia é ciência e, consequentemente, se é possível a colaboração e a continuidade da investigação. O tema foi sugerido pela realização do próprio congresso, por pensar que, “se a filosofia não passa de opinião, poesia ou construção subjetiva de indivíduos que só concordam em discordar mutuamente, o congresso filosófico já não é colaboração, mas tende a ser Babel ou confusão de duvidosa utilidade. A possibilidade da colaboração filosófica depende logicamente e está em razão direta do carácter científico da filosofia”. O autor teve particularmente em vista a refutação da conceção cientista, notadamente de Ribot, que priva de objetividade própria a filosofia, e a dos “existencialistas”, para os quais “a filosofia é disciplina radicalmente diferente das ciências”. O seu pensamento pode sintetizar-se no seguinte: “Filosofia e ciência só se concebem dentro da possibilidade de alcançar certas soluções objetivas, embora imperfeitas e provisórias como toda obra humana”.

A conferência do Prof. Miguel Reale teve por objeto a “Posição de Rui Barbosa no mundo da filosofia. Notas de estudo para a compreensão de uma trajetória espiritual”. Com claro sentido de compreensão e de conexão histórico-cultural, o autor procurou acima de tudo situar Rui Barbosa “face às correntes de pensamento do seu tempo” e mostrar que ele viveu “as abstrações doutrinárias do liberalismo, integrando-as em uma unidade indissolúvel de pensamento e de ação. Essa vivência do abstrato em função do agir, teria, de um lado, tornado dispensável uma perquirição de ordem puramente teorética e, de outro, criado condições de contraste e conflito perante a atividade social ambiente, sobre a qual se projetava a sua atividade criadora, não raro pedagógica”. Daqui, o poder dizer-se que “se há um significado de Rui para a cultura brasileira, há, correspondentemente, um significado da cultura brasileira através da obra de Rui”.

Assim orientado, após algumas observações gerais acerca do espiritualismo cristão, do humanismo clássico e da visão naturalista do universo e da vida como elementos integrantes do espírito do imorredoiro estatuário da linguagem portuguesa, o autor ocupou-se de “Rui Barbosa e a filosofia política do século XIX”, do “Pragmatismo político de Rui”, do “Espírito científico e positividade”, da “Reação anti positivista” e do “Retorno ao espiritualismo”. Discurso essencialmente esquemático, é de desejar que o autor nos dê o livro que ele potencialmente encerra, dada a densidade dos juízos e o vigor do pensamento sintético, amplamente fundado.

A terceira conferência foi proferida pelo embaixador Pontes de Miranda, sob o título “A significação do congresso”. O autor fez uma glosa pessoal, e em função das circunstâncias, da conceção, a seu ver “o maior descobrimento dos nossos dias”, “de que não foi o homem que fez a assembleia, e sim a assembleia que fez o homem”. De índole essencialmente sociológica, este discurso deu a nota pessoal, sem vinco de profissionalismo e de academismo; e o seu teor claramente se depreende do seguinte passo: “É mais difícil reunir um congresso de filosofia que um congresso de engenheiros: as indicações são menos precisas, as discussões menos concisas, as reflexões mais sacrificadas pela insuficiência do tempo... O nosso não escapou à regra. Mas a boa ordem dos trabalhos e a cordialidade com que dogmáticos, céticos e criticistas indicaram e discutiram, demonstram que sentíamos necessidade desse contato interpsíquico, dessa comunhão de interesse investigativo, ao mesmo tempo que demos prova de que a cultura brasileira continua de edificar-se no ambiente da livre discussão. Noutros termos: que estamos aptos a progredir. Porque não há cultura sem exercício de liberdade. Quando a liberdade desaparece — entenda-se: a discussão — as culturas rumam para os processos sociais em que há menos indicações; por isso, a arte é refúgio; dentre as ciências, a matemática. As psiques dos povos em que não há liberdade de pensamento só se expandem artisticamente: pintura e escultura, música e arquitetura... Nós vivemos o mais belo tempo do mundo; não o sabemos, porque estamos dentro dele. Falta-nos a distância. O perigo é que se rompa a camada que faz o homem — a indicação, a discussão e a reflexão desapareçam e se retombe no animal. Valha-nos hoje o sabermos que isso não se dá enquanto há liberdade de indicar, de discutir e de refletir”.


?>
Vamos corrigir esse problema