2. Noticia e análise de livros

Este ensaio é o segundo escrito com que a historiografia filosófica brasileira concorre, no intervalo de onze anos, para o conhecimento de Francisco Sanches. O primeiro foi a tese de doutoramento do Prof. João Cruz Costa, Ensaio sobre a vida e a obra do filósofo Francisco Sanches, São Paulo, 1942, que o autor do livrinho que nos ocupa não cita nem refere, e cuja leitura, afinal, não dispensa, nem de qualquer modo ultrapassou, quer na novidade dos pontos de vista, quer na amplitude da informação.

Agradecemos ao jovem autor, por cuja inteligência e afã de cultura temos apreço, o ensejo que nos proporcionou para revermos e confrontarmos as nossas opiniões sobre o assunto, que tendo a dúvida por trama, é e há de ser sempre objeto de divergência e controvérsia.

5. “A organização deste livro”, escreve o autor na Explicação prévia,* “obedeceu a um pensamento didático e não polémico, informativo e não dialético”. E acrescenta, precisando o seu intuito: “Faltava-nos uma síntese da controvérsia universal.

Estamos no século da análise, pertencemos a uma época de análise, na decomposição analítica se perde o senso de conjunto e o fio da coerência ideológica: e porque parte da confusão moderna provém dessa escassez de perspetiva, dessa cortina corrida sobre a amplidão e a unidade histórica da cultura, se nos afigurou meritório o inventário das doutrinas políticas — com a interpretação das suas estridente S influências — compendiado num breve catálogo”.

Obra de interpretação e não propriamente de exposição histórica das ideias, o seu pensamento move-se no plano do que o autor considera “essencial para a compreensão do que chamaríamos a linhagem do humanismo político”. Daqui, o tratamento das ideias se fazer como desenvolução no tempo, sob o norte do que o autor expressivamente diz ser “uma espécie de conceito biográfico da liberdade”. Consequentemente, o livro tem por “endereço... a mocidade”, isto é, o “homem--novo” que se está elaborando “na dignidade e na energia, e sobretudo no poder sagrado da consciência”. Assim fixado o destino, o objeto e, de algum modo, o critério, o autor empreendeu o trabalho em três direções, as quais constituem as partes em que o livro está dividido: “História das ideias políticas”, “História das contradições sociais”, “Posição humanista”.

Os dezasseis capítulos da primeira parte (pp. 9-156) têm como ponto de partida e razão de ser esta “divergência fundamental”: “Deverá ser tratado o poder como uma imposição da natureza, ou, ao contrário, não passará de uma arquitetura levantada pelo trabalho inteligente das gerações a serviço de suas elementares necessidades de ordem?”

Este o “dilema” fundamental, que nutre a controvérsia das teorias do poder, desde os filósofos do século de Péricles até aos nossos dias, e que se exprime pelas conceções do “Estado organismo”, e portanto, instituição “natural e consciente”, e do “Estado mecânico”, e portanto “urna força desenvolvida numa obra de arte, humana e imperfeita” (p. 9).

Pode pensar-se que seria mais compreensiva esta outra “divergência”, que mais ou menos explicitamente se reporta à constituição da problemática política e das respetivas respostas: Porque razão ou fundamento existe e é exercido o poder? Quem o exerce, até onde o pode exercer? O autor, porém, preferiu aquela outra “divergência”, e assim posto o problema, atribuiu, como não podia deixar de ser, uma extensão amplíssima ao conceito de teoria política, nela compreendendo, a um tempo, a expressão de ideias gerais, a problemática da reflexão filosófica, a estruturação das formas da civilização e as objetivações da cultura. Daí, as fronteiras indecisas da filosofia do poder estatal e da descrição do comportamento do Estado em conexão com a ideologia e com a conjuntura das situações histórico-sociais. Dá-nos, consequentemente, nestes capítulos, sucessiva, quando não conjugadamente, uma visão interpretativa da marcha da filosofia e da história político-social até ao século XVII, que a juízo do autor abre uma nova fase, que é a da “História das contradições sociais”. O sentido interpretativo é constante e sempre flagrante, bastando para o pôr à vista a mera enumeração dos títulos dos capítulos, que são propriamente esquemas, senão antes categorias que a aguda penetração do autor captou na marcha da cultura: “A divergência fundamental”, “A liberdade apolínea”, “A república romana”, “O direito humano”, “A iluminação cristã”, “As duas cidades”, “O poder virtuoso”, “Sob o signo canónico”, “A grande unidade”, “A originalidade ibérica”, “A sabedoria medieval”, “O advento do soberano”, “A rebelião humanista”, “A reação maquiavélica”, “A resposta académica”, “O pensamento português”.

Este último capítulo mostra claramente que a visão universalista não tornou o autor daltónico para a peculiaridade da cultura portuguesa, e, no conjunto, todos eles revelam a vastidão de vistas que se não perde em pormenores e tanto considera os acontecimentos sob o ponto de vista europeu como americano. É que o seu pensamento fita o essencial e move-se no plano das sínteses e das correlações estruturais. Daí o interesse, ou mais propriamente a sedução destas páginas concisas e densas, mas porque sedução não quer dizer assentimento, sob o brilho, por vezes fulgurante, de muitos períodos jazem juízos que suscitam reparos e objeções.

Assim, escolhendo um exemplo que Mais nos importa, considera o autor que o pensamento político português do século XVII, expresso em numerosos escritos doutrinários, tem por objeto “a teoria da realeza nacional”, cuja “chave” é “o antimaquiavelismo”.

Sem dúvida, a letra expressa de numerosas declarações e alusões dos doutrinários setecentistas portugueses acusa a repulsa do amoralismo, senão impiedade, da conceção do Príncipe; no entanto, a observação mostra que este antimaquiavelismo, como penetrantemente observou Pierre Mesnard, retomou “sous le couvert d'un cléricalisme d'Etat à peu près toutes les recettes et en tout cas le climat politique du réalisme florentin”.

A segunda parte tem por objeto a “História das contradições sociais” e desenvolve-se nos seguintes capítulos: “A polémica providencial”, “A fuga utópica”, “Novo mundo, vida nova”, “Mitologia liberal”, “A volta de César”, “A insurreição racional”, “A filosofia da resistência”, “A pedagogia da revolução”, “França e América”, “O equívoco da revolução”, “A sagrada propriedade”, “Entre a utilidade e a ideia”, “O princípio social”, “Do individual ao coletivo”, “O justo meio”, “A evolução orgânica”, “A solução catastrófica”, “A atmosfera democrática”, “A marcha prudente”, “No mundo dos mitos”, “A libertação contraditória”.


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