2. Noticia e análise de livros

Pelo plano construtivo, pela amplitude da investigação, pela discriminação das correntes e dos comportamentos ideológicos em correlação com o processo formativo e desenvolutivo da consciência brasileira, este livro é uma obra capital e assinala uma data na historiografia das ideias e da consciência histórica do Brasil. O seu objeto não consiste no exame intrínseco das correntes filosóficas que atingiram a mentalidade brasileira, mas na consideração da influência que elas exerceram na constituição da realidade que é o Brasil. Consequentemente, a Contribuição não é uma história abstrata de conceções filosóficas, mas o exame da participação das ideias filosóficas na “dinâmica” da vida intelectual brasileira ao longo do tempo e da marcha constitutiva da consciência nacional e cultural do Brasil.

O autor partiu do dado de que a civilização brasileira é “um prolongamento, um ramo novo talvez, da civilização ocidental”, no qual, noutro cenário e com outros homens, o tempo “também se fez história”, da qual se desprende “uma experiência humana e uma filosofia apenas esboçada”.

A estrutura e as características do pensamento e da cultura brasileira constituem, assim, o objeto ideal, para o qual ninguém mais e melhor preparado do que o autor, mas a Contribuição que nos ocupa tem principalmente em vista “estudar as transformações ou deformações das doutrinas europeias no Brasil e indagar das influências que estas tiveram entre nós, principalmente na segunda metade do século XIX”. Consequentemente, o autor destinou a sua Contribuição ao estudo da transplantação, assimilação, projeção e significação social das ideias filosóficas, desde os tempos coloniais até à segunda guerra mundial, como protagonistas da história do Brasil, na medida em que orientaram os seus intelectuais, os seus mestres, os seus condutores da opinião, e os seus políticos, e se fizeram, portanto, história viva do Brasil.

O autor dividiu o livro em três partes, destinadas, respetivamente, ao balanço da “herança portuguesa” e das “vicissitudes da formação colonial”, à filosofia no Brasil durante o século XIX, após a independência, e às “ideias no século XX”.

O cap. I da primeira parte versa, sucessivamente, “o sentido pragmático do pensamento ibérico”, “os descobrimentos e o humanismo em Portugal”, as “consequências do humanismo em Portugal” e “os contrastes da formação nacional”, em ordem à compreensão do início do “rosário de contradições de nossa experiência intelectual”.

Para a maneira de ser do brasileiro, o índio concorreu com “o sentimento de rebeldia e de resignação”, o negro, com “a contraditória e dramática história de sensualidade e de abnegação”, mas é ao português da descoberta e da colonização que cabe a “mais decisiva influência sobre a vida intelectual”, ligando o Brasil “à civilização ocidental”. É, pois, a partir da mentalidade e das características da cultura portuguesa, especialmente no século XVI, que se constitui no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, “a forma atual” da cultura brasileira, para a qual “o resto foi matéria plástica, que se sujeitou, mal ou bem, a essa forma”.

A juízo do autor, a mentalidade do português de Quinhentos caracteriza-se pelo “sentido pragmático”, orientada para uma forma concreta de pensamento que se afasta e diferencia dos moldes das culturas dos demais países da Europa medieval”, mas a cultura que Portugal transmitiu, por intermédio principalmente das escolas dos jesuítas, foi de tipo literário, tão extensa e profunda que “o formalismo, em que ainda se debate” a inteligência brasileira, “a retórica, o gramaticismo, a erudição livresca, são traços que herdámos da formação, dita humanista, derivada do século XVI português”. Daqui, o juízo de que os primeiros tempos do Brasil histórico coincidem, sociologicamente, com o início da “decadência” de Portugal, e intelectualmente, com o rompimento do “fio condutor da cultura portuguesa”, porque o “sentido prático, humano, realista, desviara-se para a especulação sem substância, para o comentário de textos”. Culturalmente, o Brasil seria o “achado” de um “momento de transformação cultural”, e daí, o esboçarem-se “talvez, a partir de então, as contradições do nosso destino”.

Consequente com estes juízos, o cap. II da parte I ocupa-se de “as vicissitudes da formação colonial”, versando sucessivamente “o império e a fé — os dois tipos de colonizadores”, “a decadência da metrópole e o desenvolvimento da colónia” e “o Brasil-Reino e a cultura”. Nestas páginas, o autor faz judiciosas considerações sociológicas sobre o aventureiro e o jesuíta como principais obreiros da “empresa de especulação comercial que foi a colonização”, sobre a mentalidade do letrado, formado nas escolas da Companhia de Jesus, sobre a ruína da estrutura da economia colonial, sobre o ingresso do Brasil “no jogo das lutas económicas do mundo civilizado” e sobre o movimento de ideias em ordem à compreensão das circunstâncias e das causas que concorreram para a emancipação política do Brasil.

Na segunda parte, o autor faz a história das ideias e da sua influência no Brasil durante o século XIX, após a independência, pondo a claro as respetivas fontes europeias, pois durante este período “as ideias no Brasil não descendem umas das outras, não as liga um liame histórico”.

Seguindo cronologicamente a bibliografia filosófica e os acontecimentos políticos-sociais na medida em que eles exprimem atitudes e correntes ideológicas, as duzentas páginas desta parte são expressão acabada da historiografia de ideias — que não é a mesma coisa que historiografia filosófica            conjugando admiravelmente a segurança criteriosa do método e a amplitude da informação com as determinações e exigências do objeto que se propôs. Do Compêndio de Filosofia (1833), do orador sacro Fr. Francisco de Mont'Alverne, que é uma amálgama de ideias vigentes no final do século XVIII e da incipiente influência do ecletismo francês, mas que historicamente “constitui corno que a transição entre o pensamento filosófico colonial e o do Império”, até Farias Brito, o filósofo de A Finalidade do Mundo (3 vols., 1895-1905), de A Verdade como Regra das Ações (1905), de A Base Física do Espírito (1912) e do Mundo Interior (1914), o autor registou, considerou e apreciou as diversas manifestações individuais e político-sociais da introdução, assimilação, irradiação e vigência das ideias filosóficas. Com lúcido sentido das proporções e das correlações, versa sucessivamente a influência do romantismo, do ecletismo, filosofia conveniente “ao interesse dos moderados” em política e que “condizia com os ideais monárquico-constitucionais da jovem aristocracia sul-americana”, cuja influência se prolongou no Brasil até finais do século XIX, da reação neocatólica, da escola do Recife, à qual cabe “a parte mais fulgurante na renovação intelectual do Brasil no século XIX”, principalmente com 'fobias Barreto, detendo-se com mais demora, como cumpria, no positivismo e no evolucionismo, do qual foi destacada figura Sílvio Romero.


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