2. Noticia e análise de livros

O autor, de acordo com a historiografia tradicional, vê em Sanches principalmente o epistemologista, iniciando o cap. V (Exposição da doutrina principal, Quod nihil scitur) com este período: “Parte Sanches da crítica do conceito aristotélico-tomista da verdade, separando desde logo a filosofia da teologia (...)” (p. 44). Duas afirmações muito discutíveis: a primeira temo-la por inexata, e a segunda, por exagerada, pois é mais preciso dizer-se com C. Bartholmèss (Huet Evê que d'Avranches ou le scepticisme théologique, Paris 1850, p. 176), que Sanches “se gardait de toucher aux questions morales et religieuses”. Quase todos, senão todos os “pirrónicos” do seu tempo, recorreram aos argumentos e tropos da Nova Academia para justificarem a apologética, procurando na debilidade e nas incoerências da razão a fundamentação de crenças que nutrissem a conduta. O historiador da filosofia, Klimke, aduzido pelo autor (p. 62), situa Sanches nesta atitude, mas o ceticismo do Quod nihil scitur não condiciona intencionalmente uma apologética, porque foi pensado somente como condição prévia do estabelecimento de uma teoria da Ciência, sem arquétipos e sem universais nem predicamentos: “Mihi namque in animo est firmam et facilem quantum possim scientiam fundare...”. Apesar da universalidade e radicalidade do título, o Quod nihil scitur não se propõe demonstrar a impossibilidade do conhecimento científico nem a ilegitimidade de todo e qualquer juízo predicativo e afirmativo de realidades extramentais. O seu objeto consistiu na refutação das conceções da ciência que assentam na existência de universais e, de modo geral, de qualquer substanciação de conceitos independentes da mente que os pensa. As conceções que direta e expressamente refutou foram as da ciência ser “habitus per demonstrationem acquisitus”, saber constituído pelo conhecimento das causas, conhecimento pela reminiscência e conhecimento perfeito do objeto. Na refutação desta última conceção da ciência, Sanches utilizou largamente as Hipotiposes pirrónicas de Sexto Empírico, insistindo de modo geral, na crítica das quatro conceções, como denominador comum, na vacuidade do formalismo lógico-escolástico e na do conteúdo do saber que se constitua a partir de generalizações e de essências. Era a posição coerente com o sensismo da sua epistemologia, graças ao qual deixavam de ter fundamento os problemas que a escolástica versava com base na noção de essência, designadamente o da relação das essências entre si, o passo da essência à existência e a explicação da individuação.

A dúvida de Sanches não é radical, pois expressamente declara reconhecer a legitimidade da certeza obtida “per experimentum et judicium”, ou seja o conhecimento nos limites da experiência concreta. O nominalismo é, consequentemente, a conceção epistemológica do Quod nihil scitur, como aliás o autor muito bem acentua. A exposição que nos dá da argumentação de Sanches podia reportar-se com mais precisão à estrutura dos raciocínios do Quod nihil scitur, mas são de louvar a penetração e a consistência de algumas das suas observações e juízos.

O capítulo VI, o mais extenso, ocupa-se das relações do pensamento de Sanches com Bacon, Descartes, Hume, Kant e Bergson. O autor expõe o assunto com clareza e informação, sendo as respetivas páginas, porventura, as mais penetrantes do seu ensaio. Deixando sem reparo de maior o exagero, para não dizer inexatidão, de algumas afirmações, designadamente a de ninguém ter realizado “um ataque mais duro e rude, mais direto e frontal contra Aristóteles do que Francisco Sanches” (p. 60) e deste ter tido a “coragem singular”, que faltou a Descartes, de “enfrentar a descoberto a ortodoxia da época e a intolerância então reinante” (p. 61), notaremos somente o que mais importa à estrutura deste capítulo e respetiva construção.

O autor lançou-se confiadamente ao assunto sem se deter um momento no exame do problema da possibilidade teórica da influência do Quod nihil scitur na filosofia moderna e contemporânea. Uma obra pensada para um problema limitado, dentro da temática metafísica tradicional, pode ser fonte efetiva da desenvolução de pensamentos que respondem a problemas muito diferentes e que se nutrem de outros estímulos e objetos?

Inteirado do que haviam escrito Menéndez y Pelayo e E. Senchet, principalmente, o autor prosseguiu no mesmo caminho, sem responder a esta pergunta prévia, e portanto estabelecendo paralelos e influências que põem o brilho das palavras no lugar da exatidão das ideias.

Assim, não hesita em escrever que “com a sua teoria dos idola nada mais fez Bacon do que repetir Sanches, sem lhe acrescentar nada de novo” (p. 69), e que “o próprio princípio da indução científica, que sempre acompanha o nome de Bacon, (...) já era apregoado por Sanches” (p. 70). O autor não se abona com paralelos diretos — nem podia abonar-se, porque a teoria dos erros, no Quod nihil scitur, repetindo e prolongando Sexto Empírico, não se compagina na finalidade com a teoria dos idola, e a teoria das tábuas e a da indução baconiana estão fora e longe do puro sensismo de Sanches e da sua conceção do conhecimento legítimo somente nos limites da perceção.

Tudo leva a crer que Descartes leu o Quod nihil scitur, mas daí não pode concluir-se sem mais pela influência do pensamento de Sanches na conceção cartesiana da dúvida e na génese do cogito. O autor, que se mostra informado destes assuntos, e por vezes penetrou no âmago deles, foi neste ponto mais circunspecto e prudente, evitando afirmações destituídas de consistência. E com razão, porque a epistemologia de Sanches somente admitia a constatação do real. A ciência que tinha em vista era simplesmente mostrativa, ao passo que Descartes, recusando-se a admitir que o imediato da experiência sensível constituísse por si só o conhecimento científico, concebia a ciência como demonstrativa.

A prudência de que o autor deu mostra na correlação com Descartes perdeu-a ao referir-se a Kant, pois, escreve, “deixando de lado David Hume — porque, no que tinha de essencial, foi seu pensamento incorporado ao sistema do filósofo alemão —, encontramos em Sanches rasgos precursores do pensamento do criador do idealismo transcendental” (p. 87).

Nenhuma das correlações que estabelece são a nosso ver fundadas — nem o podem ser pela razão simples da Crítica da razão pura e do Quod nihil scitur responderem a problemas que nada têm que ver entre si: Kant, investigou criticamente as condições racionais da ciência como facto, procurando determinar as condições transcendentais da respetiva possibilidade, e Sanches pôs em dúvida as raízes da certeza e da inteligibilidade em que assentavam as conceções da ciência como “habitus per demonstrationem acquisitus”, como conhecimento pelas causas, como reminiscência e como conhecimento perfeito de um objeto.

Finalmente, como contribuição sua própria e original, relaciona o autor a interna visio de Sanches com a intuição de Bergson. O autor não desenvolveu a sua opinião, como muito seria de desejar, porque o levaria a penetrar na estrutura da epistemologia de Sanches: cremos, no entanto, que a correlação é meramente verbal.

O derradeiro capítulo, sobre a significação da obra de Sanches, lê-se com gosto, e nele se acentua, como cumpria, o valor histórico--cultural da mensagem do filósofo do Quod nihil scitur.


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