2. Noticia e análise de livros

Os títulos, predominantemente qualificativos, exprimem e condensam o juízo crítico ou a apreciação valorativa do autor acerca do movimento de ideias e estados de espírito e dos acontecimentos histórico-sociais desde o século XVI aos nossos dias. Todas as aspirações e ideias de renovação política, moral e social de quatro séculos perpassam na essencialidade e na observação histórico-cultural nestes vinte e um capítulos, cuja intitulação mostra expressivamente a orientação do autor, que em vez da exposição dos acontecimentos em função das respetivas determinações concretas, preferiu dizer o que deles pensava, já na respetiva essencialidade, já nas consequências que desentranharam e desentranham. A opinião e a subjetividade ocupam uma vez mais a dianteira, mas se, como na primeira parte, não faltam os ensejos de repulsa crítica também abundam, e admiravelmente, os motivos incitantes da reflexão e a finura das observações, que vão do descobrimento do aborígene americano e dos valores ético-políticos que ele fez emergir até à conceção marxista da solução final de todas as antinomias, de todas as contradições e de todas “as caravanas da cultura”, na frase do autor.

A terceira parte, “Posição humanista”, desenvolve-se nestes capítulos: “A servidão alegórica”, “A experiência de Leviatã”, “O grande conflito”, “A exaltação individual”, “A função do Estado”, “Os quatro problemas”, “A recomposição humanista”, “O homem novo”. No fundo, os oito capítulos assentam em três análises — “do homem, como o interpretamos; do Estado, como o instituímos; da justiça, como a desejamos” — e abrangem, “numa visão de conjunto, a crise mundial no melado do século XX” (p. 362).

Discutível em muitos dos seus juízos e criticável pela pressa com que passou por algumas conceções, este livro, sobre todos os defeitos e omissões tem o mérito incontestável de patentear o talento do autor, a sua vasta cultura, a sagacidade da sua reflexão e a maleabilidade dos seus recursos literários. Pela problemática, pela informação, copiosíssima e variada, e pela largueza de vistas, esta obra não tem par na literatura de língua portuguesa e está destinada a exercer uma influência altamente sugestiva e prestante. Como nenhuma outra no seu género, ela reage salutarmente contra os excessos da formação analítica. O progresso científico somente se alcança com o esclarecimento de problemas precisos e de âmbito limitado, e o pensamento que se move apenas no plano das generalidades cai inevitavelmente no vácuo e no impreciso. Tudo isto é exato, mas não é menos exato que a cultura se desvitaliza sem a perspetiva das ideias gerais, e se é certo que cumpre a cada geração contribuir com dados definitivos para o acervo dos conhecimentos também não é menos certo que lhe cumpre fazer o próprio exame dos conhecimentos adquiridos e marcar a posição que eles comportam. Esta é a significação deste livro, cujo assunto, pelo menos à primeira vista, não está na linha dos anteriores trabalhos do autor, apesar de todos haverem nascido sob o ditame da síntese e da compreensividade. Daí, o pensar-se na possibilidade de uma motivação acidental, mas exista ou não, ele marca uma posição própria, afirma um talento de múltiplos recursos e assinala uma diretriz digna de aplauso.

6. “Este livro”, escreve o autor no prefácio,* “representa o fruto de mais de dez anos de magistério na Faculdade de Direito de São Paulo, sob cujas arcadas, quando ainda estudante, comecei a redigir minhas primeiras observações sobre os problemas do Direito e do Estado”.

Produto do labor docente numa Escola de singular tradição na cultura paulista e de altas responsabilidades na consciência universitária brasileira, esta obra conjuga o saber dos livros com o da experiência e “trato assíduo com questões administrativas e políticas”, norteada, aliás, pelo propósito de “teorizar a vida e de viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação”, como o autor expressivamente declara.

O valor e o alcance da obra ultrapassam, porém, e muito, o âmbito docente e a significação pessoal. É que a densidade de pensamento, a solidez e a variedade da informação, e o encadeamento da problemática, que se fundamenta e desenvolve coerentemente em função da conceção do direito como “experiência histórico-cultural”, impõem que saudemos o aparecimento desta obra mestra como notável acontecimento da cultura brasileira, assim em relação à filosofia do direito propriamente dita como em relação aos problemas da teoria do conhecimento, da ética e da teoria da cultura que a nutrem e esclarecem.

O volume I, único publicado, reparte-se em dois tomos: o I é uma “Propedêutica filosófica ad usum jurisprudentiae” e consta dos seguintes “títulos”, cada um dos quais se subdivide em capítulos: “Objeto da filosofia”, “Noções de gnosiologia”, “Noções de ontologia e de axiologia”, “Ética e teoria da cultura”; e o II tem por objeto a “Ontognosiologia jurídica” e versa os seguintes “títulos”: “Os temas da filosofia jurídica”, “Empirismo e apriorismo jurídicos quanto a seus pressupostos metodológicos”, “A realidade jurídica e o problema metodológico”, “Fenomenologia da ação e da conduta”, “Explicações unilaterais da realidade jurídica”, “Teoria tridimensional do direito”, “Tridimensionalidade e integração normativa”, “Direito e moral”.

É nosso intuito por agora noticiar somente o aparecimento desta obra, cujos volumes ulteriores terão por objeto a “Epistemologia jurídica”, a “Deontologia jurídica”, a “Cultorologia jurídica” e a “História das doutrinas filosófico-jurídicas”. B:asta, porém, a mera indicação dos “títulos” e dos assuntos para mostrar a densidade e a elevação com que este livro foi pensado, no qual à objetividade da exposição se junta frequentemente a posição pessoal do autor, criticamente fundamentada, quando não originalmente desenvolvida, como na teoria tridimensional do direito e a justificação do culturalismo jurídico personalista. Obra de didata e de filósofo, ou mais propriamente de um mestre em torno de cujo pensamento já começam a formar-se discípulos, ela assinala o ponto mais alto que no Brasil atingiu o tratamento da filosofia do direito e dos seus fundamentos e pressupostos filosóficos, sendo lícito vaticinar-lhe o apreço geral e a consagração pelo que ela representa, significa e determina.

7. É este volume a reedição, com modificações na distribuição dos capítulos e com o acréscimo de um capítulo sobre “As ideias no século XX”, da tese de concurso à cátedra de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,* que o autor apresentou em 1950 e mereceu do júri e da crítica, brasileira e estrangeira, os mais rasgados elogios, tendo saído há pouco uni resumo na coleção “Terra Firme”, do Fondo de Cultura Económica, do México, com o título: Esbozo de una Historia de las Ideas en el Brasil (1957).


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