2. Noticia e análise de livros

Se a árvore se conhece pelo fruto, este livro é digno da Escola que formou o autor, à qual foi apresentado como tese de doutoramento. Quem assim se apresenta, assume obrigações, não só com a própria Escola, onde já é mestre e que hoje vindica nobremente as exigências da ética docente e do ideal universitário como formação, senão também com a cientificação da história da cultura e do pensamento no Brasil.

4. É sempre grata a irradiação dos estudos de assuntos portugueses, subindo de ponto a gratidão quando a irradiação se acompanha da compreensão do que nos é próprio. Tanto basta para que signifiquemos ao jovem e esperançoso autor o nosso apreço pelo ensaio que dedicou ao autor do Quod nihil scitur,* mas apreço e simpatia não querem dizer aplauso sem adversativas e objeções.

O autor pensou o assunto com entusiasmo, desenvolveu-o com coerência, em função do seu ponto de vista, expô-lo com clareza e informou-se com diligência. Na informação, notam-se deficiências, mas o que importa neste livrinho não é a indagação de factos mas a ordenação e disposição dos factos já conhecidos. O plano obedeceu ao seguinte esquema: significação geral do pensamento filosófico em Portugal; caracterização geral do Renascimento, e, em especial, da feição que o Humanismo e o Renascimento tiveram em Portugal, dados fundamentais da biobibliografia de Sanches, exposição sintética das ideias basilares do Quod nihil scitur, relações das ideias deste livro com Bacon, Descartes, Hume, Kant e Bergson, terminando com algumas páginas sobre a significação da obra de Sanches.

Como se vê, o esquema assenta no critério comummente seguido: caracterização do meio histórico-cultural, situação do filósofo neste meio, exposição das respetivas ideias e sua influência na história da filosofia. É o esquema coerente, e tê-lo desenvolvido com encadeamento lógico é a primeira coisa a notar em abono do autor, embora seja de notar a falta de algumas indagações e reflexões sobre as fontes capitais da informação filosófica de Francisco Sanches. A coerência lógica do plano não é, porém, suficiente e bastante, porque se impõe também, e decisivamente, a consideração da consistência, ou seja o exame da densidade e da exatidão dos informes e dos juízos. A característica de ensaio, que o autor deu às suas páginas, permitiu-lhe desembaraço no discorrer, sem as limitações que entravam o pensamento que somente se deixa desenvolver segundo as determinações do objeto e respetivas correlações lógicas. Daí, adversativas e objeções, das quais somente apontaremos algumas, das que mais importam ao conhecimento exato e à compreensão da filosofia de Sanches.

O autor abre o livrinho com a afirmação de que “a figura de Francisco Sanches foi singular em sua época, entre os portugueses, pelo que significa de inquietação e autêntica vocação para os estudos filosóficos”. Esta singularidade leva-o a pôr o problema da “vocação dos estudos filosóficos em Portugal” (cap. I), ou por outras palavras, da “existência de uma continuidade histórica no pensar abstrato e conceituai do espírito português” (p. 11). Colocando-se no ponto de vista geral da teoria das conceções da vida, de Dilthey, o autor reconhece que o povo português tem “uma particular maneira de encarar as coisas do mundo e do espírito”, mas corno a filosofia é uma especificação da conceção da vida, pressupondo e constituindo sempre “uma meditação crítica, uma sistematização racional dos problemas totais que apresenta a realidade, mas sempre um exame da razão, mesmo quando se trata de uma filosofia irracionalista ou anti-intelectualista”, e em Portugal se não verifica “uma continuidade histórica no pensar abstrato e conceitual do espírito português”, não hesita em concluir que a história filosófica em Portugal não apresenta “uma sistemática contínua” e somente “casos individuais”, como Sanches, “que se isolam em sua época, à espera que o futuro lhes reconheça os méritos particulares”.

O autor chegou a esta conclusão mediante a leitura de alguns escritos portugueses, nenhum dos quais, aliás, tocou ao de leve, sequer, a estrutura do assunto. A sua opinião apresenta-se corno opção entre duas teses, e não propriamente como juízo resultante de uma reflexão sobre as relações entre nacionalidade e filosofia ou como síntese de uma larga convivência com a literatura filosófica portuguesa. Este é um dos grandes temas em suspenso, pois evidentemente não pode ser abordado sem sólidos estudos preliminares sobre a filosofia em Portugal, isto é, sobre a morfologia, extensão e profundidade da atividade assimiladora, e sobre os ideais científicos e culturais que têm incitado a mentalidade portuguesa. Não pode atingir-se o peculiar de Portugal sem conhecer previamente o que se assimilou em Portugal, pois o pensamento próprio quase sempre se constitui em oposição ou como divergência, de sorte que a “sistemática contínua” a que o autor alude não parece ser uma categoria mediante a qual se apreenda ou possa vir a apreender a especificidade do pensamento filosófico português.

No cap. II o autor dá um conspecto muito geral do “Humanismo e Renascimento. O século XVI”, visto livro algum “representar tão bem o espírito renascentista como o Quod nihil scitur. Iniciava-se aqui a história da filosofia moderna” (pp. 15-16). Se o autor teve somente em vista Portugal, raros lhe concederão que o Quod nihil scitur exprima melhor o espírito renascentista do que as obras de Camões, de Pedro Nunes e de Jerónimo Osório, admiravelmente expressivas da mentalidade e da nova temática, e se pensou de modo geral, historiador algum perfilhará o seu juízo, assim corno o do Quod nihil scitur iniciar a história da filosofia moderna. Quando muito, pode considerar-se como termo da atividade filosófica da Renascença, se se admitir que ela significa uma época de transição e de preparação para a filosofia moderna, que verdadeiramente se inicia com Descartes, cuja problemática abriu sulcos e determinou correntes como nenhum outro pensador coetâneo, designadamente Giordano Bruno e Francisco Bacon.

No desenvolvimento do plano, delineia a seguir (cap. III), a traços demasiado largos e rápidos, as linhas gerais do Humanismo e da Renascença em Portugal, e, no cap. IV, a vida e obras de Sanches. São páginas de compilação. No cap. III, para tornar compreensível a integração de Sanches, cumpria mostrar como e em que sentido o Renascimento em Portugal, abrindo o caminho individuante da imanência, conduziu ao Humanismo, isto é, à conceção de certa autossuficiência do homem. No cap. IV é particularmente digna de nota a afirmação de que Sanches se deteve, “principalmente, nas preocupações centrais das próprias bases do conhecimento humano, que é a filosofia. Podemos desde já apontar a nota característica que se destaca de todos os seus escritos: o irrequieto e agudo senso crítico (...)” (p. 39).

Se o “senso crítico”, ou talvez mais propriamente a atitude polemizante, caracteriza quase todos os escritos de Sanches, que até nós chegaram, isso não quer dizer que a tendência crítica tivesse conduzido a mente de Sanches, a deter-se principalmente nas “próprias bases do conhecimento humano”. O Quod nihil scitur é a única obra em que Sanches se ocupa de temas epistemológicos, e se se pode conjeturar que a haja pensado, em boa parte, de olhos fitos nas traduções das Hipotiposes pirrónicas e do Contra os matemáticos, de Sexto Empírico, e escrito com intenção pessoal, porventura ad hominem, o tratamento do assunto é francamente de sentido psicológico e não epistemológico. A epistemologia, como tal, só se constituiu verdadeiramente como disciplina filosófica a partir do Ensaio de Locke; e além disto, o exame da totalidade dos escritos de Sanches, incluindo os de assunto médico, põe o problema de saber se a preocupação capital de Sanches incidiu sobre o ato de conhecer, em especial sobre o alcance e o valor do conhecimento, ou sobre a coisa conhecida, em especial sobre a explicação do processus da natureza. O Quod nihil scitur acusa evidentemente o primado da reflexão sobre o conhecimento, mas a reflexão apresenta-se como propedêutica à teoria do conhecimento exato, que é o conhecimento nos limites da perceção, sem universais nem quididades. Sanches não tornou a ocupar-se, com desenvolvimento, de qualquer tema conexo com o Quid nihil scitur e, pelo contrário, tudo indica que a explicação do processus da natureza, constituiu o assunto predominante da sua reflexão filosófica. Uma coisa é a hierarquia dos problemas na mente de Sanches e outra a vigência histórica das suas conceções. A sua explicação do processo físico-natural, no quadro do aristotelismo mas na linha da de Telesio e que Sanches desenvolveu no Examen rerum, cujo texto se perdeu e cujas variadas citações são significativas do apreço que lhe votou, perderam todo o interesse, mormente depois da Scienza nuova de Galileu; pelo contrário, o Quod nihil scitur, ditado talvez por circunstâncias ocasionais e prematuramente dado a público, jamais citado pelo próprio Sanches, alcançou ulteriormente significação histórica, pela correlação com a temática da dúvida, de incitante e decisiva importância na derradeira quadra do século XVI, e com a teoria do conhecimento, que mais ou menos explicitamente constitui o ponto de partida do pensamento moderno.


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