2. Noticia e análise de livros

O Prof. Arthur Versiani Venoso tomou por objeto da sua conferência, que intitulou “Breves considerações críticas, preliminares a um estudo acerca do ensino da filosofia no Brasil”, o exame da responsabilidade que cabe à organização e à didática do ensino da filosofia no desfavor que a mentalidade brasileira tem votado à indagação filosófica. É o desfavor produto de incapacidade nativa ou, pelo contrário, da deficiência, senão ausência, das indispensáveis condições socioculturais?

Contra o juízo de Tobias Barreto — “O Brasil não tem cabeça filosófica” —, o autor responsabiliza a organização oficial do ensino da filosofia, cujas vicissitudes e insuficiências pôs a nu, não hesitando em afirmar que “os pontos essenciais e nevrálgicos da razão de ser do nosso enciclopédico atraso em matéria filosófica” são atribuíveis “ao mau ensino, ao ensino errado, nos programas, nos professores, nos compêndios e nas leituras que da filosofia, de longa data, se vem fazendo em nossa pátria”. Modificada a situação tradicional do ensino e dissipado “o mito da incapacidade congénita”, o autor afirma a sua confiança no futuro da produção filosófica brasileira, registando que ela é “hoje suficientemente copiosa e já bastantemente marcada para não conter-se mais em simples ensaios jornalísticos, de sua natural condição efémeros, reduzidos e de importância relativa”.

A conferência do ilustre Prof. Versiani Velloso tem a sua raiz profunda na consciência de que a cultura filosófica brasileira não pode desprender-se do conjunto da cultura brasílica e se não deve render à novidade, por ser novidade, nem alienar-se perante o pretendido “espírito de superação”.

O desenvolvimento, em extensão e profundidade, das comunicações relativas à “Filosofia no Brasil” (vol. I, pp. 103-259) mostra claramente a atualidade e a vivacidade desta consciência.

Com efeito, o problema das raízes históricas e das características da cultura brasileira foi como que diversificado nas seguintes comunicações da primeira secção (“Filosofia no Brasil”):

“Revisão dos valores do pensamento brasileiro de meados do século XIX”, de Almeida Magalhães, em ordem a nova valorização, imparcial e objetiva, designadamente dos juízos polémicos de Sílvio Romero em A Filosofia no Brasil (1878).

 “As escolas de filosofia económica no Brasil”, de Arnóbio Graça, que a juízo do autor são as seguintes: clássica e neoclássica, histórico--materialista, matemática, cooperativista, histórico-cultural probabilitária e do humanismo económico.

“Contribuição ao estudo da ilustração no Brasil”, de Jamil Almansur Haddad, a qual consistiu essencialmente na caracterização das diversas academias brasileiras do século XVIII.

“A significação do positivismo na filosofia jurídica brasileira”, de José Pedro Galvão de Sousa, ou seja a história das vicissitudes do conceito de direito natural em face das atitudes positivistas.

“La filosofia di Farias Brito”, de Gina Magnavita Galeffi, que a autora não chegou propriamente a caracterizar por ter dado acima de tudo os traços fundamentais do pensador de O Mundo Interior (1914), notadamente a filiação espiritual socrática, “o temperamento fundamentalmente místico”, “a preocupação de libertar a filosofia do formalismo intelectualista” e a associação da “lírica e da lógica ao serviço da verdade”.

“Ideias para a filosofia no Brasil”, de Hélio Jaguaribe, as quais giram à volta da influência do dogmatismo e da provisoriedade na marcha do pensamento brasileiro e da consciência atual da crise deste pensamento.

“O significado e o sentido da cultura brasileira” foi o título com que Humberto Grande exprimiu os anelos do seu patriotismo; e Ivan Lins concorreu com uma prestante contribuição bibliográfica e histórico--política acerca de “O positivismo no Brasil”.

“Estelita Tapajoz, precursor de Spengler?”, foi o tema que Luiz Washington propôs acerca do autor dos Ensaios de Filosofia e Ciência (São Paulo, 1898), de filiação haeckeliana, não hesitando em dar uma resposta afirmativa em virtude da “coincidência” da conceção das culturas como organismos biológicos, de marcha cíclica, e da crença na decadência do Ocidente.

Com mestria e nítida clareza de ideias ocupou-se Miguel Reale, sob o título de “O culturalismo na Escola do Recife”, da antítese natureza e cultura no pensamento de Tobias Barreto e da tentativa do ilustre sergipano em a superar sem sair do monismo que professava. A juízo do autor ampla e penetrantemente fundado, “o mérito imorredoiro do autor dos Estudos Alemães está em ter visto o problema como um problema filosófico, e não puramente sociológico, não compreendendo, infelizmente, que a sua formulação era, por si mesma, a mais cabal condenação das doutrinas monistas que abraçara, maxime após reconhecer a impossibilidade de colocar completamente a “vida espiritual sob o causalismo da natureza”.

Sob o título de “Conversões da cultura latino-americana”, ocupou-se Napoleão Lopes Filho, com finura e moderação, do seguinte problema de antropologia cultural: a influência ativa e passiva, na situação atual da cultura latino-americana, dos resíduos indígenas na conversão de valores estético-morais, desenvolvendo as suas observações, sucessivamente, em relação ao “pagão americano e sua circunstância” e em relação à “primeira intenção do homem ibérico em terras de América” e por fim sobre a “aglutinação e repulsão no matrimónio cultural ibero-americano”. Das “conclusões” destacaremos os seguintes períodos, que condensam o pensamento do autor: “Visto que o homem pagão americano tinha como escopo a simples subsistência física e o homem europeu era movido por motivos transcendentais na navegação, conquista e colonização do novo mundo, vemos que a absorção deste sobre os conquistados foi fatal. Devemos aceitar que os elementos culturais do indígena influenciaram o europeu e mormente o mestiço. Gradativamente a influência do indígena foi desaparecendo e foi-se estilizando. Atualmente a presença do indígena é esporádica como representação do tipo puro e a sua influência em forma de resíduos culturais é real, porém de menor valia construtiva. Há um erro grave no desconhecimento ex-professo desta remanescência do índio na sociedade atual”.

Oswald de Andrade, em “Um aspeto antropofágico da cultura brasileira — o homem cordial”, viu num trecho de Fernão Cardim a confirmação da alteridade, isto é, o sentimento do sujeito se ver em outrem, “um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal”.

Renato Cirel Czema debuxou o “Panorama filosófico brasileiro”, em ordem a fundamentar teoricamente o tema, ou por outras palavras, a história do pensamento filosófico num país de “indiscutível juventude”. O autor começou por estabelecer que a “Filosofia é, ao mesmo tempo, representada pelos espíritos 'individuais' dos filósofos e pelo processo de autocriação de uma época ou de uma nação; que ela é a dialética entre o momento do espírito e o processo do espírito, como processo histórico-filosófico em que, em cada momento, está integrado; que não há contradição nem incompatibilidade entre estas duas posições, porque a filosofia é a integração dialética de ambos os momentos, em cada momento e em cada pensador”. Visto a esta luz, o estudo do pensamento filosófico brasileiro equivale a apreender a consciência de si próprio, que o Brasil vai adquirindo “progressivamente, através das tendências e de seus representantes”. Segundo o autor, a filosofia atual, no Brasil nasceu “no início do século XIX, como uma espécie de nebulosa indistinta, do seio da qual surgem, numa concretização progressiva, numa tomada de posição que sempre mais as individualiza e delimita, as várias tendências do pensamento”. Esta nebulosa inicial constituiu-se originariamente como reação contra a tradição escolástica herdada de Portugal, concretizando-se posteriormente em posições intelectuais ligadas à modernidade designadamente o kantismo e o positivismo, cuja assimilação brasileira o autor caracteriza. O século atual começou por uma reação contra a esterilidade espiritual do positivismo. Farias Brito foi o arauto do “espírito de inquietação e da insatisfeita busca da verdade” através de nova problemática, e em especial “contra a conceção materialista, positivista e cientifista”. A jovem geração “continua o caminho iniciado pelo seu grande precursor”, e por outro, presta atenção às hodiernas manifestações do pensamento europeu, notadamente de Spengler pois “poucos são os pensadores mais recentes que não tenham passado por uma fase de entusiasmo spengleriano”, das tendências irracionalistas e, por vezes místicas (à Berdiaef, por exemplo) e do neotomismo. O autor terminou com a caracterização filosófica dos mais relevantes pensadores do Brasil dos nossos dias.


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