Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

À memória do Desembargador António Dias e do Advogado Orlando Marçal, meus defensores num pleito cívico.

A atividade jurídica de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822) foi multíplice; se o seu saber de jure constituto se exprimiu pela pena do escritor e pelos pareceres e sentenças do magistrado, o seu pensamento de jure constituendo manifestou-se pelas decisões do estadista e pelos votos do deputado constituinte, assinalando um e outro os recursos e dotes de uma poderosa individualidade que em todos os cargos e situações sempre se tornou respeitado e cujas conceções de Direito Público são inseparáveis das primeiras jornadas da nossa História Constitucional.

Pela importância, alcance e influência, nenhumas outras conceções suas rivalizam com estas; não obstante, o homem que as formulou e defendeu na derradeira quadra da vida fora o mesmo que empregara largos anos no estudo e na aplicação do Direito Privado, sobre o qual escreveu algumas páginas que merecem ser conhecidas pelo pensamento que exprimem, pela atitude moral que abonam e pelo préstimo que dispensam à compreensão das ações do governante e do parlamentar.

Pela índole e pelo objeto, o que segue é, pois, subsidiário e, de certo modo, preliminar do que historicamente define a personalidade do Regenerador de 1820, cujo patriotismo, cuja coragem cívica, cuja coerência política e isenção moral alcançaram a veneração dos que trazem inseparavelmente enlaçado na alma o amor da Pátria ao sentimento da Liberdade e o culto da Justiça ao cumprimento do Dever e do Direito.

I — Dois livros acreditam Fernandes Tomás como jurisconsulto: as Observações sobre o Discurso que escreveu Manuel de Almeida e Sousa em favor dos direitos dominicaes da Coroa, donatarios e particulares, Coimbra, 1814, volume em 4.° de 209 páginas, impresso na Imprensa da Universidade, e o Reportorio geral, ou indice alphabetico das leis extravagantes do reino de Portugal, publicadas depois das Ordenações, comprehendendo tambem algumas anteriores que se acham em observancia, repartido em dois volumes, também impressos na mesma famosa e malfadada oficina coimbrã, em 1815 e, em “segunda edição correta e aumentada”, em 1843.

Redigidos contemporaneamente na cidade universitária, quando aí fazia o segundo triénio no cargo de Provedor da Comarca sendo já, aliás, Desembargador da Relação do Porto desde 1811, e publicados apenas com o intervalo de um ano, estes dois livros, com serem diferentes na índole, na estrutura e no alcance, descobrem a mesma orientação jurídica. Ë que Fernandes Tomás, como jurisconsulto, foi um discípulo da Reforma pombalina dos estudos jurídicos, isto é, da conceção que considera a história como “comércio tão íntimo, tão familiar e tão frequente com a jurisprudência como a alma tem com o corpo” e que, coerentemente, introduziu no plano docente da Faculdade de Leis o ensino do Direito pátrio, “com total separação do Direito Romano”, o do Direito natural, público universal e das gentes, o da História civil de Portugal e das leis portuguesas como “prenoções indispensáveis para a verdadeira inteligência de todas as leis e do genuíno sentido delas”, isto é, como “cadeira subsidiária própria do Direito Civil, que aliás implicava ainda o estudo da notícia literária da Jurisprudência civil e dos livros jurídicos e o das “Regras da crítica e da Hermenêutica jurídica, das quais dependem a sólida inteligência das leis e o conhecimento de as aplicar aos factos com a devida exatidão e acerto”.

Fernandes Tomás assimilou profundamente as essências intelectuais da incomparável Reforma, que sempre citou com admiração e cujos ensinamentos aconselhou, designadamente no passo das Observações (§ 89, n. b) em que declara que “para conhecer a importância de uma exata aplicação do Direito ao facto, sobeja ler expendidas com a costumada erudição e energia as doutrinas dos Estatutos da Universidade de Coimbra (L. 2, t. 6, c. 8)”.

Pascoal José de Melo Freire (1738 †  1798), cuja mente e cujo labor souberam dar expressão perfeita ao doutrinamento da Reforma, foi seu Mestre venerado, não já como lente nas aulas dos Gerais da Universidade, mas pela lição silenciosa das páginas normativas da Historia Juris Ciuilis Lusitani e das Institutiones Juris Ciuilis Lusitani cum publici tum privati. “O grande respeito e veneração que sempre tivemos às opiniões de Pascoal José de Melo, a bem merecida reputação de que goza no Foro e a muito justa adoção de duas obras para uso da Universidade, nos obrigam a defender, declara, quanto ser possa, qualquer de suas opiniões, que nos pareça impugnada com menos fundamento” (§ 57); por isso, é com mal contida indignação que verbera o ousio de Lobão ao censurar e taxar de erróneas algumas doutrinas do Mestre, cujos “luminosos princípios, que ele estabelece, as ideias liberais que neles desenvolve, as razões políticas em que os fundamenta, deviam fazer respeitar mais seus sentimentos” (§ 60).

“Quem ler as obras de Melo Freire, diz (§ 60), achará que ele não fala sempre de jure constituto, mas sim e algumas vezes de jure constituendo. As muitas ideias que havia adquirido sobre a Jurisprudência e Política universal, seus amplíssimos conhecimentos dos nossos usos e dos costumes das Nações que nos governarão, a lembrança muito adequada dos factos históricos que mais ligação têm com a Legislação pátria, em que foi grande sabedor, e finalmente o gosto e pureza de seus princípios, adquiridos pelo estudo da crítica mais exata, não podiam pela maior parte conter-se nos limites de um comentário ou síntese. Vagueava, portanto, algumas vezes, folgando de espalhar luz sobre as matérias que tratava, e julgando que porventura alguém poderia um dia tirar partido de suas lembranças”.

Com tal doutrinação, ampla e firmemente arreigada, não surpreende que Fernandes Tomás proscrevesse o Direito Romano como fonte direta e atual, reconhecesse em todas as circunstâncias valimento decisivo ao Direito pátrio — “quando a Lei pátria fala, tudo emudece”, disse —, e compenetrasse a teoria do Direito pelo respetivo estudo histórico.

Das correntes suas contemporâneas foi, com efeito, a historicista a que lhe avassalou o espírito. Estudante de Leis, aprendeu nas Positiones de lege naturali de Martini (1726-1800), sobre cujas páginas se debruçaram muitas gerações, da Reforma pombalina a 1843, uma atitude racionalista, de confiança nas luzes da razão e de anelo reformista, talvez embrião do futuro doutrinário e constituinte do Estado liberal; e já homem feito e responsável meditou, certamente, as reflexões de Filangieri, de De Felice, no Code de l'Humanité, e do “célebre jurisconsulto” Jeremias Bentham, no Traité de Legislation, cada um com sua índole peculiar mas todos coincidentes no humanitarismo progressista e na compenetração das conceções jurídicas pelo sentimento moral.

Não obstante, foi para a fundamentação e esclarecimento do Direito pela História, que não pela Filosofia e, menos ainda, pelo Direito Comparado, que o seu espírito se orientou e as suas vigílias se aplicaram. Solicitavam-no neste sentido a lição do Mestre Pascoal de Melo Freire e o pendor natural do seu génio, tão conforme à tendência dos portugueses a procurarem no presente o vinco do passado, e como que lhe impunha ainda este critério historicista o ambiente epocal da cultura, dominado, pelo que ao Direito importa, pela problemática das origens e transformação das instituições jurídicas.


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