Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

Não forão atendidas as reprezentações que a Camara do Couto fez à Corporação do Cabido, e eu a varios membros, para conter os rendeiros nos limites do Foral. A impugnação judicial do que era innovado arbitrariamente, fez parar até o prezente a solução do que era legitimamente devido. Este acontecimento tem influido de tal forma na população da Paroquia, que apezar das calamidades da invazão, da escassez das Colheitas ha varios annos, e do que os povos despendem com a sua defeza, o numero dos fogos tem augmentado até 220, e deve considerar-se a Paroquia augmentada com 32 fogos no espaço de 18 annos”.

As extorsões não poupavam o próprio sacerdote; como os principais rendimentos da Igreja eram constituídos por primícias e pela meação dos dízimos com o Cabido, os rendeiros defraudavam-no, sobretudo na meação, o que deu ensejo à disputa do pároco com o Cabido.

Houve, assim, duas demandas: uma, dos povos, no foro civil, com base no Foral, outra, do pároco, no foro civil e canónico, este com base especialmente na Constituição do Bispado.

Só a primeira importa ao nosso objeto, embora estejam intimamente ligadas pela causa, pelo fim e pela pessoa, que para honra do seu ministério esqueceu os interesses pessoais pelos dos fregueses, de quem foi corajoso, tenaz e esclarecido defensor, por se considerar “autorizado por Direito, na qualidade de Pároco, para proteger a justa e legal defesa dos pobres, órfãos e viúvas desta freguesia, envolvidos nesta cruel perseguição”.

Como cumpria, foi junto do Cabido e com o Foral nas mãos que o prior Manuel Dias de Sousa deu os primeiros passos, e não obtendo a conciliação, como ele próprio declara, “inculquei a defesa legal a quem me procurava, sem chamar a ninguém, nem obrigar a seguir os meus conselhos”.

Começa então a fase litigiosa, que se arrastaria por alguns anos nos tribunais, com crescente interesse dos letrados e da opinião pública. Compreende-se: os moradores do couto de Vila Nova pediam a isenção das prestações que excedessem o declarado no Foral e dos dízimos sem título, que as prestações estabelecidas no Foral não fossem exigidas sem se apresentarem as devidas confirmações, e, finalmente, que o Cabido fosse condenado nas penas em que estava incurso pelas extorsões praticadas e a indemnizar os autores por tudo quanto indevidamente deles havia recebido —, e este pedido era de transcendente alcance jurídico e social. Julgá-lo, era, de certo modo, julgar a própria injustiça inerente à estrutura e ao funcionamento da máquina administrativa e fiscal do Estado. Compreende-se, pois, o interesse desta causa, que subitamente alcançou extraordinária retumbância quando se tornou público que a Relação do Porto, por sentença de 26 de Março de 1814, não só julgara contra o Cabido de Coimbra como condenara os advogados deste, Manuel de Almeida e Sousa, Lobão (assim conhecido pela freguesia em que residia), e João Baptista da Silva, “que na defesa e razões do Réu quebrantaram tão estranhavelmente os deveres do seu nobre Ofício, atacando a autoridade das Leis, e faltando ao respeito e decoro que lhes é devido”, a pagarem cada um deles 50 mil réis para as despesas da Relação e a seis meses de suspensão, que lhes seria intimada em forma competente.

A sucessão de litígios em torno do foral de Vila Nova bastava de per si para despertar a curiosidade de alguns letrados e a atenção pública, porque não era debalde que se arrastariam durante dez anos o pleito dos meios dízimos entre o Cabido e o pároco, desde o Juízo da Correição de Coimbra, passando pela Relação do Porto, até à Casa da Suplicação, para prosseguir ainda com os embargos do pároco à execução da sentença, e, com menos duração, mas com mais intensidade emotiva, a ação de força nova proposta pelo Cabido contra a Câmara do Couto pela negação da merenda (1805-1806), da qual a Relação do Porto conheceu um agravo, e, sobretudo, a ação negatória dos excessos do foral cometidos pelo Cabido, proposta pelos moradores de Vila Nova na Correição de Coimbra e que subiu ao Juízo da Coroa, na Relação do Porto.

A impulsão destas demandas procedia da vontade tenaz e enérgica do pároco de Vila Nova, que jamais desfaleceu na defesa dos seus paroquianos, quer ela se litigasse nos tribunais, quer se pleiteasse na opinião. Prodigalizou, por isso, as advertências, os conselhos e as exortações, e, quando necessário, não hesitou também em pôr a sua pena ao serviço da justa causa. O mais famoso dos seus escritos são os Apontamentos para defeza dos Lavradores do Couto de Villa Nova de Monsarros, contra as extorsões, que delles se pertendem em nome do Reverendissimo Cabido da Sé de Coimbra Donatario do mesmo Couto, que compostos em 1805  logo se divulgaram em cópias manuscritas e imprimiram à contenda o tom elevado e erudito de uma controvérsia sobre graves temas de História e de Direito.

Basta o subtítulo de cada um dos Apontamentos para que isto ressalte: Apontamento Sobre a authoridade, que devem ter os titulos por onde se exigem prestações; Apontamento II — Sobre a Legalidade das Doações Regias; Apontamento III— Sobre o objeto, e Legalidade dos Tombos; Apontamento - IV — Sobre as alterações que o Donatario tem feito no Foral, e Apontamento V — Effeitos da oppressão, e extratagemas do Donatario. Compostas para o povo de Vila Nova, o seu poder expansivo, porém, não conhecia limites, ensinando acessivelmente a maneira segura de descobrir e provar as demasias e ilegalidades de quaisquer donatários da Coroa, fossem particulares, ordens ou corporações; por isso, a clareza de propósitos e a larga informação destas teses podiam ser iludidas ou sufocadas, mas não toleravam o ardil das evasivas.

O homem que aceitou o desafio, trazendo publicamente para a discussão letrada o problema da situação histórico-jurídica dos senhorios e, em particular, o exame do valor intrínseco e do alcance jurídico das teses dos Apontamentos, foi o causídico de Lobão, Manuel de Almeida e Sousa. Fora aos seus vastos recursos de advogado que o Cabido de Coimbra recorreu, pelo menos durante os quatro anos em que a ação pendeu na Relação do Porto, desde a petição inicial de 14 de Fevereiro de 1810 à publicação da sentença em 24 de Março de 1814. A contestação que apresentara abundava em provarás, tocando matéria histórica, de facto e de direito. Com ser rotunda nas afirmações e variada nos argumentos, faltava-lhe, no entanto, o desenvolvimento doutrinal, de certo modo impróprio senão incompatível com a secura inerente ao articulado de um praxista.

A magnitude da causa, que afetava a estabilidade da ordem social, exigia, porém, outra defesa mais profunda e vasta. Estavam em jogo velhos interesses de donatários e de senhorios, uns e outros alarmados com a reforma prometida pela carta régia de 7 de Março de 1810 e pelas provisões dirigidas em 1811 (Março) pela Regência aos Corregedores das Comarcas, nas quais se declarava o propósito oficial de “aliviar os... vassalos dos gravames que lhes impõem alguns forais”, pelo que se lhes ordenava que informassem acerca dos “direitos que o             povo paga” e do cálculo do “prejuízo que poderá ter cada um dos donatários da extinção dos que lhe pertencerem”.

Lobão compreendeu o alcance da causa. Movido, porventura, pelo sentimento de que urgia opor barreiras ao assalto contra velhos direitos e privilégios e pela satisfação de desenvolver com aparato erudito a substância de alguns articulados da sua contestação, e, sem dúvida, pelo intento de identificar a causa do Cabido com a da ordem social, não hesitou na tentativa de demonstrar às gentes do foro o valor jurídico de algumas opiniões relacionadas com o direito foraleiro e a inconsistência das teses dos Apontamentos, cujo título insidiosamente deturpou e denunciou como “Papel sedicioso”.


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