Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

No conjunto da atividade que manifestaram podem separar-se os aspetos científicos dos aspetos propriamente filosóficos.

Os aspetos científicos, como adiante acentuaremos, dizem respeito à introdução e à prática da metodologia de observação e de experimentação e à representação científico-natural do Mundo; os aspetos filosóficos, por seu turno, às ideias gerais, à racionalidade de que se inspiram, à metódica da proposição e do esclarecimento dos problemas, à conexão estreita com os resultados científicos e à intenção prática de beneficiar a Humanidade.

A Escolástica articulara-se em sistema, isto é, num edifício doutrinal imponente, de estrutura fixa, cujas conceções formavam urna região própria de conhecimentos, que se situava fora e acima dos conhecimentos particulares da Natureza e do mundo histórico-cultural. Entre nós, as correntes e atitudes mentais que socavaram o imponente edifício, cuja restauração nos séculos XVI e XVII assinala uma das mais notáveis manifestações do espírito filosófico em Portugal, não atuaram, em geral, em nome do dogmatismo de qualquer sistema. A luta contra a Escolástica, nos meados do século XVIII não foi propriamente uma luta de sistemas, mas a luta da atitude antissistemática contra o espírito de sistema, da metodologia experimental contra a especulação apriorista e dedutiva, do conhecimento exato das ciências particulares contra conceções gerais sem outro fundamento que não fosse a coerência lógica dentro do sistema a que se articulavam.               

Nesta luta, insistente, tenaz, multiforme, tomaram parte adeptos mais ou menos fiéis do cartesianismo, do atomismo, do ecletismo e do empirismo. Só os últimos importam diretamente ao objetivo desta introdução, mas como a sua ação se não compreende cabalmente sem o conhecimento das correntes que os precederam e da conjuntura cultural em que viveram, tracemos rapidamente o desenho doutrinal de cada uma delas.            

Todas as correntes modernizantes coincidiram no repúdio da Lógica formal, com o desenvolvimento e sentido dialético que a Escola lhe dera, no da Física qualitativa e no da conceção das formas substanciais, isto é, de modo geral, da conceção que, remontando a Aristóteles (Metafísica, VII, 4) tem por necessária à explicabilidade da Natureza a existência de formas imateriais, que pela união à matéria, limitando-a, determinando-a e dando-lhe sentido, participam na composição dos seres.  

Com efeito, nem os manuais em uso, como a Nova Logica Conimbricensis (1721 e 1734) de Gregório Barreto (t 1727), conhecida na gíria escolar pela Lógica Barreta, e a Pharus Dialectica, sive logicae universae elucidatio in tres partes distributa (Évora, 1720 e 1753), de Bento de Macedo, mestre da Filosofia em Évora, nem a orientação do ensino, de finalidade puramente dialética e disputante, nem a sustentação de teses, que às vezes se celebrava em ambiente de ostentação e quase sempre tinha em vista a prontidão das respostas e o brilho da argúcia, acreditavam uma disciplina e um ensino que um dos adversários do Verdadeiro Método de Estudar, de Verney, teve de reconhecer que «as nossas Filosofias andam cheias de muitas questões que se podiam omitir, e disto têm culpa os arguentes, que deram em levantar tantas dúvidas                que são a causa de que os Mestres as tratem. Ao menos servem para apurar o discurso, e com a perceção destas chamadas galantarias da Escola fica um estudante hábil para perceber qualquer dificuldade mais embaraçada... Quanto dinheiro se gasta em adereçar uma sala com cadeiras, espelhos, cortinas, panos e vidraças? Que pecado é que os estudiosos lidem com questões, que ornam e desembaraçam o bom discurso?»Apesar da mácula congénita da ostentação e da «galantaria», como se acaba de ler, as teses de Filosofia nem por isso deixam de exprimir a situação cultural e, de algum modo, a penetração das ideias modernas.

O seu estudo está por fazer, a começar no próprio inventário bibliográfico, mas as que conhecemos, existentes na Biblioteca da Universidade de Coimbra, autorizam a afirmação da existência de progressos sensíveis, dos meados do século XVII aos meados do século XVIII, ou mais exatamente, ao encerramento dos colégios da Companhia de Jesus. De feição estritamente lógica, no quadro que a autoridade das Instituições de Dialética de Pedro da Fonseca havia como que imposto, ou compreensiva dos ramos fundamentais da filosofia aristotélica, a proposição de teses, decorrido um século, inclui já temas de sentido modernizante, mas a inclusão não significa abandono da atitude e da problemática escolásticas.

Os compêndios em voga acentuam mais vincadamente a feição tradicional do ensino. Assim, a Pharus dialectica, que parece ter sido adotado nas escolas de Lisboa, passa inteiramente à margem de toda a metodologia científica e não tem uma palavra sobre qualquer reflexão relativa à teoria do juízo e do raciocínio que se não apresente com marca aristotélica. É um compêndio baseado nos Conimbricenses, especialmente nas Instituições Dialéticas de Pedro da Fonseca, e noutros escolásticos, designadamente Soares Lusitano, Oviedo, Ariaga, Spinola, etc. Nas suas três partes, ocupa-se sucessivamente dos proemiais, dos elementos do silogismo, que reparte em matéria remota, ou seja a definição, classificação e propriedades (afectiones) dos termos (suppositio, status, distractio, ampliatio, restrictio et appellatio), e em materia proxima, ou seja a natureza e classificação das proposições, sua oposição, conversão e equipolência, e, finalmente, da teoria do silogismo (multiplicidade, modos e figuras) e dos vícios do raciocínio, sofismas e falácias.

Como este, os outros compêndios de lógica aristotélica fatigavam o espírito sem o esclarecerem, deixando pela vida fora a sensação da inutilidade e do tempo perdido; por isso, se compreende que se tornasse objeto de chacota quem na vida real tomasse a sério o verbalismo das distinções lógicas e que o mestre do infante D. António, irmão de D. João V, o engenheiro Manuel de Azevedo Fortes (1660-1748), tivesse escrito no antelóquio da Lógica Racional, Geométrica e Analítica (Lisboa, 1744) que «semelhante estudo mais servia para embaraçar e confundir as nossas ideias do que para aperfeiçoar as operações do nosso entendimento, que é o fim principal da Lógica».

Coincidentes no repúdio da Lógica dos escolásticos, pensada em função de uma metafísica substancialista e com intenção mais disputante que inquiridora, os inovadores nem por isso estavam de acordo relativamente à estruturação da Lógica que a devia substituir. Admitiam que a metodologia, isto é, as regras conducentes ao pensar exato, constituísse o objeto fundamental, mas divergiam no conteúdo e, sobretudo, no desenvolvimento. São disso testemunho Azevedo Fortes, Verney e Manuel Alvares.

Em 1744, Azevedo Fortes, na já citada Lógica Racional, Geométrica e Analítica, distingue a Lógica Natural, isto é, as disposições com que nascemos para perceber, julgar e discorrer, da Lógica Artificial, que «é uma arte que com várias regras e preceitos dirige e aperfeiçoa as operações do nosso entendimento, ou também, um sistema de reflexões sobre as nossas ideias» (§ 12). Com fundamentação psicológica, sentido prático e olhos fitos na demonstração matemática, Azevedo Fortes faz sucessivamente o compêndio, a um tempo teórico e prático, das ideias, do juízo, do discurso e da lógica contenciosa. De informação variada — aconselha como livros de Filosofia, entre os antigos, Aristóteles, Platão e Santo Agostinho, e dos modernos, em «primeiro lugar Francisco Verulamio», em segundo, Galileu, em terceiro, Pedro Gassendo, em quarto, Renato Cartesio, e depois, Newton, a Lógica ou Arte de Pensar, de Port-Royal, Malebranche, Arnauld e Pascal, — refere, embora superficialmente, alguns dos problemas epistemológicos e lógicos da filosofia racionalista e empirista do século XVII, apoiando-se para a respetiva solução no autor ou na teoria que tem por mais acertada. Conquanto o não confesse, a sua mente sofreu, como talvez nenhum outro contemporâneo, a influência de Descartes, assim na metafísica, notadamente sobre a conceção da substância, e na metodologia, pois traduziu, sem declarar a proveniência, as quatro regras da parte II do Discurso do Método, aplicando-as à solução «das questões que se podem resolver pela Analisi”(pp. 126-7) e transmudou em vícios do entendimento a precipitação e prevenção a que Descartes se referia na primeira das suas regras.


?>
Vamos corrigir esse problema