Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Das duas grandes manifestações do pensamento moderno e anti-escolástico, anteriormente à obra dos materialistas, como La Mettrie, e à de alguns enciclopedistas, como o Barão de Holbach, nenhuma outra corrente filosófica foi mais temida e fez aluir mais profundamente os alicerces da síntese escolástica do que o empirismo de Hobbes e de Locke. Verney fez muito barulho à sua volta, mas no seu eclectismo ressoam ainda algumas teses tradicionais; o empirismo, em que ninguém falou às claras, pelo contrário, situava a mente numa ordem de problemas e num ritmo de pensamento que nada tinham de comum com a concepção escolástica do Mundo e com a conformação mental e metodológica em que ela assentava.

Do empirismo se pode dizer que é uma atitude constante e uma forma imanente da atividade do espírito, nas mesmas condições e termos em que o são o gosto da especulação abstracta e a necessidade da organização sistemática dos conhecimentos. Em todas as épocas coexistem, portanto, mentalidades que têm o sentido do concreto e do prático e mentalidades que têm o sentido do abstrato e do desinteressado, mas a relação de umas para as outras não é sempre a mesma, como não é sempre a mesma a sistematização de ideias com que se apresentam ao longo da História.

A Inglaterra é o país em que esta atitude e esta mentalidade são como que nativas, mas no século XVIII nenhuma nação do Continente europeu se esquivou ao apelo da objectividade científica e do empirismo, entendido como posição que se coloca à margem da Metafísica e procura alcançar o conhecimento concreto.

Pelo que a Portugal respeita, ele assinala uma das manifestações mais significativas da luta entre a modernidade e a tradição filosófica da Contra-Reforma, ou por palavras mais precisas, entre o sentido do concreto e o abstraccionismo entre a indagação exacta de problemas delimitados e o espírito de sistema, assim escolástico como cartesiano, entre a problemática ontológica, universalista, abstrativa, atemporal, e a necessidade sentida de levar a luz da Razão aos problemas do homem e da sociedade.

A conjuntura cultural reclamava realmente a aplicação do espírito analítico e do sentido prático da existência. Filosoficamente, desde os Conimbricenses, vivia-se de opiniões sistemáticas e de uma concepção do Mundo que se tornara incompatível com alguns resultados da Ciência moderna —, e daqui a reclamação exigente do pensamento científico, que não progride com generalidades mas com observações exactas e com o esclarecimento de problemas rigorosamente delimitados, e a temática nova do pensamento filosófico, que somente alcança consistência e amplitude comprensiva quando se firma coerentemente nos resultados da atividade científica em todos os domínios.

Filosoficamente, a problemática nova e a atitude mental que lhe é correlativa estão ligadas às concepções de Galileu, de Descartes, de Gassendi, de Bacon, de Hobbes e de Locke. Com serem independentes e  por vezes até antagónicas, nem por isso deixam de coincidir solidariamente na crítica da Metafísica da Escola. Todas têm de comum o sentido de positividade e o anelo de finalidade prática, mas não se confundem e até podem ser isoladas e consideradas separadamente. E, o que vamos fazer em relação a John Locke (1632-1704).

Em três domínios diferentes se acusa a influência do pensador inglês: na Teoria política, na Pedagogia, na Filosofia geral e na Teoria do conhecimento.     

A influência na concepção do Estado e da vida política é a mais recente. O movimento liberal português, como os seus similares do continente europeu, não se compreende sem a divulgação do doutrinarismo de Locke acerca da tolerância e do fundamento e limitações do poder estatal, mas não é menos óbvio que esta influência se exerceu por assim dizer anónima e difusamente. O que importa, é a presença direta e individuada dos seus escritos, principalmente do segundo dos tratados saídos a público pela primeira vez em 1690: Two Treatises of Government. In the former, the false principies and foundation of Sir Robert Filmer, and his followers, are delected and overthown; the latter, is an Essay cancerning the true original, extent, and end of Civil Government.      

No século XVIII estes escritos passaram despercebidos entre nós e também se não dá fé da sua presença entre os que concorreram para a gestação doutrinal do Vintismo, cujas origens, aliás, se prendem fortemente à terra portuguesa, ao arranco patriótico das Juntas de 1808 contra o invasor francês e à repulsa do anacrónico e injusto regime administrativo e fiscal. Somente se acusa a do segundo destes tratados em 1833, depois da outorga da Carta Constitucional, durante a emigração liberal, com o objetivo prático de fortalecer as convicções no valor do sistema constitucional, pois neste ano saiu a público, em Londres, da oficina de Richard Taylor, o Ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do Governo Civil. Escripto em Inglez por John Locke, e traduzido para portuguez por João Oliveira de Carvalho, estudante do terceiro anno de Canones. Off erecido aos Constitucionaes Portuguezes, como Principios Fundamentaes para a Consolidação da Carta Constitucional, datada em 29 de Abril de 1862.

Foi, pois, tardia a influência direta das concepções políticas de Locke, em especial do famoso Ensaio. Ao contrário da obra de Jeremias Bentham, que foi lida e considerada durante os debates preparatórios da Constituição de 1822, pode dizer-se que a obra de Locke não conta na preparação direta da Carta Constitucional mas sim na da sua justificação doutrinal durante a luta pela estruturação e instauração da Monarquia Constitucional.

A influência nas concepções pedagógicas procede diretamente dos Some Thoughts concerning Education, saídos a público pela primeira vez em 1693. A sinceridade com que Locke abordou os problemas, a nítida discriminação das formas capitais da educação, o realismo com que as considerou, o profundo sentido prático e ético da formação humana, o equilíbrio com que conjugou a autonomia da personalidade com o respeito pela autoridade, fizeram desta obra uma manifestação altamente expressiva do carácter inglês e dos ideais pedagógicos que vieram a configurar o Século das Luzes. É índice expressivo do apreço em que foi tida a sucessão de edições durante o século XVIII, quer na língua original, quer em traduções, e deste apreço entre nós deu principal testemunho Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, com os Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre, publicados em Lisboa, em 1734, pois como observou Francisco Bernardo de Lima, em 1761, «ainda que o Autor em muitas partes da sua Obra não faça mais, que compendiar o que diz Locke na educação dos meninos, sobre o uso das frutas se afasta deste famoso Inglês ...”.

Estas duas influências têm de ser tomadas em consideração na fenomenologia, variada e complexa, da instauração do pensamento ético--político moderno em Portugal, mas não alcançaram o volume que as concepções filosóficas de Locke exerceram na dissolução do sistema metafísico da Escolástica.

Acontecimento de capital importância e de extraordinário alcance, o seu processus mental consistiu essencialmente na penetração do espírito e das teses do An Essay concerning human understanding que Locke deu a público em 1690 e com o qual se iniciou a consideração autónoma da Teoria do conhecimento.


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