Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Esta conceção da matéria, coerente com a conceção da Física pensada em termos de Geometria — toute ma Physique n'est autre chose que Géométrie, disse o próprio Descartes — alcançou rapidamente a aceitação dos doutos e até a dos esclarecidos, graças sobretudo à sedução literária dos Entretiens sur la pluralité des mondes (1686), de Fontenelle. Foi nela que por então se reconheceu a originalidade privativa de Descartes e se fixou a atenção sobretudo pelas consequências teológicas que implicava. O método proposto no Discurso, ou por outras palavras, a atitude mental e as regras conducentes ao progresso da explicação científica, só na segunda metade do século XVIII, após a Lógica Racional e Geométrica (1746), de Azevedo Fortes, despertou algum interesse, podendo ver-se nele a origem do que então se chamava método analítico ou resolutivo e método sintético ou compositivo, e é necessário esperar a ruína quase total da ciência cartesiana e a influência do criticismo de Kant para que entre nós também se reconheça que a originalidade suprema de Descartes reside na apreensão do valor e do significado do Cogito.

Na sucessão histórica das três direções do apreço pela filosofia cartesiana — física, metodológica, introversão do pensamento e fundamentação da teoria do saber —, foi o determinismo e a explicabilidade das relações físicas pelos modos da extensão, isto é, a grandeza e a figura, e pelo movimento, a conceção que entre nós primeiramente se considerou como característica primacial da originalidade de Descartes e marcou o alvo principal das impugnações. Silvestre Aranha, nas Disputationes metaphysicae in duas partes distributae (I - De antepraedimentis, II - De praedicamentis), publicadas em Coimbra em 1740, refutou as provas cartesianas da existência de Deus, mas foi na repulsa (depulsio) da conceção da extensão corno essência dos corpos que pôs mais vigor dialético. Não obstante, ela seduziu alguns raros espíritos amantes da clareza, como Azevedo Fortes, mas a conceção cartesiana não dava explicação fácil à variedade dos dados sensoriais, nem justificava a teoria corpuscular como consequência necessária dos dados estabelecidos.

A carência de fundamento científico atribuída a todos os objetos de, indagação ou de experimentação que se não apresentassem como relações de número e de medida desprovia de interesse real muitas reflexões tidas por válidas e por valiosas; no entanto, as objeções capitais contra a Física cartesiana procediam principalmente do repúdio das formas substanciais. Descartes fora coerente ao eliminá-las, porque a conceção mecanicista da Natureza significa que as relações físicas se explicam matematicamente, recorrendo somente à causalidade eficiente e material, com exclusão das causas final e formal.

A expulsão da explicação hilemórfica surgia, porém, aos olhos dos fiéis à filosofia tradicional como fautora de ateísmo, tanto mais que também tinham por incompatível com o dogma da transubstanciação a conceção da extensão como propriedade essencial da matéria.

Os atomistas, ou gassendistas como também eram frequentemente designados em atenção à renovação da conceção de Demócrito que Pierre Gassendi (1592-1655) havia defendido notadamente no Syntagma philosophiae Epicuri (1659), se divulgara com os oito volumes do Abrégé de la philosophie de Gassendi (Lyon, 1678) do médico Bernier e que o prestígio do filósofo jesuíta Boscovich acreditara, admitiam a descontinuidade da matéria em virtude dela ser constituída por átomos que se dão no vácuo.

Sem apurar se o conhecimento da teoria procedeu diretamente da própria obra de Gassendi ou, como afirma Verney no Verdadeiro Método (carta VIII), da exposição de divulgadores, designadamente da Philosophia Maignani Scholastica, de Saguens, basta ao nosso ponto de vista acentuar-lhe a característica, ou seja a explicação da variedade das qualidades sensíveis pela diversidade da constituição atómica dos seres.

O símile dos átomos com as letras do alfabeto como que popularizara a conceção: se com as letras se formam todas as palavras e constroem todas as produções literárias assim também com os átomos, mediante combinações sem conto, se formam todos os seres do Universo. Consequentemente, a determinação das propriedades da matéria equivale à determinação das propriedades dos átomos, e estas propriedades são a ingerabilidade, a incorruptibilidade e a insecabilidade.

Com os cartesianos, os gassendistas coincidiam no repúdio da Física qualitativa, na admissão do mecanicismo ou determinismo da Natureza, na conceção do espaço como realidade objetiva e independente do espírito, e até podia ver-se parentesco entre as teorias do átomo e do corpúsculo; divergiam, porém, em pontos fundamentais, pois os atomistas defendiam o que os cartesianos negavam, a saber, a existência do vazio e a condensação e rarefação da matéria.

Os mais ilustrados distinguiram claramente o cartesianismo do atomismo, como por exemplo, o padre Silvestre Aranha, no Disputationum Physicarum adversus Atomisticum Systema quod defendendo suscepit R. P. Tomas Vicentius Tosca,... (P. I, Coimbra, 1747), ao acentuar que somente coincidiam no repúdio das formas substanciais, mas não faltou quem confundisse as duas correntes, identificando-as numa única orientação doutrinal. É disto expressivo exemplo a Refutatio philosophica, sive conferentia philosophiae conferens inter novam et innovatam Philosophiam, et celeberrimam Peripateticam Resolutiones varias (Coimbra, 1748), de Tomás Manuel Pamplona Rangel Carneiro de Figueiroa, «sacerdote, filósofo, teólogo e jurista natural de Vila do Conde».

No proémio (p. 1), logo declara que é seu propósito refutar «a doutrina dos inovadores atomistas, como dizem uns, ou cartesianos ou corpulatores, como querem outros», mostrando a confusão, por um lado, e ignorância, por outro, que considerou as divergências doutrinais somente em função da conceção hilemórfica e das dificuldades teológicas implícitas nas novas teorias da matéria.

Nesta ordem de ideias, começou por afirmar que as conceções físicas dos «inovadores”eram racionalmente dissonantes e teologicamente erróneas e para prova enumerou (pp. 5-6) os pontos em que elas divergem das conceções aceitas comummente pelos peripatéticos.

No que diz, não há sombra de originalidade, nem sequer de conhecimento direto de qualquer escrito de Gassendi e de Descartes, parecendo que escreveu a Refutatio para tomar partido no debate com Saguens, de que é peça capital o livro deste último intitulado Atomismus demonstratus et vindicatus ab impugnationibus philosophico-theologicis reverendi admodum Patris Francisci Palanco, Toulouse, 1725. A fonte das suas informações procede de compêndios em voga, dos quais cita principalmente Palanco, «no seu notabilíssimo volume tomista contra os atomistas», e também, como é crível, do próprio ensino do Colégio das Artes, que devia ter presente as «Proposições proibidas pela XV Congregação Geral”(1706), que nos colégios da Companhia de Jesus a nostris defendi non possunt sub poena inhabilitatis ad Philosophiam et Theologiam docendam.

Carneiro de Figueiroa, que era sobrinho do reitor da Universidade deste nome, decidira-se a escrever a Refutatio por não haver em Portugal um livro expressamente escrito contra os sequazes desta «seita», abonando-se com o facto das obras de Descartes terem sido postas em 1663 no Index e com o exemplo do « admirável” livro escrito em francês por Louis de La Ville, no qual relatava a condenação do cartesianismo pela Universidade de Paris e pela Faculdade de Teologia de Caen (Cadomensis) em 1675.


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