A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

A nosso ver, a doação de 12 de Outubro de 1431 e as cartas de 25 de Março de 1448 e de 22 de Setembro de 1460, relativas à sustentação da cátedra de Prima de Teologia, testemunham um propósito que foi muito além do decoro na instalação material do Estudo, que por então não tinha “casas proprias em que leessem e fezessem sseus auctos escolasticos de todas as scientias ante andava sempre per casas alheas e de aluguer como cousa desabrigada e desalojada”.

Com efeito, a doação de 12 de Outubro de 1431 21, feita no início de novo ano escolar, sugere que o Infante instalou o ensino das Artes em local próprio, não só para decoro do ensino mas também por haver completado o quadro docente das Artes. Tudo parece indicar que até então o ensino universitário das Artes se havia limitado exclusivamente à Gramática, à Didática (Lógica) e à Música. O silêncio dos documentos, pelo menos, não contraria esta maneira de ver; e sendo assim, caberia ao Infante a iniciativa do estabelecimento do ensino completo do Trivium e do Quadrivium, isto é, das artes sermocinales e das artes reales, ou sejam, segundo a ordem por que Alcuíno as dispôs, a Gramática, Dialética e Retórica, a Aritmética, Geometria, Astronomia e Música.

Com ter alguma margem de conjetura, esta opinião afigura-se-nos mais coerente com a situação cultural do que a de Richard Henry Major, que, com base neste mesmo documento, admitiu a possibilidade do infante haver instituído uma cadeira de Matemática.

Nenhum documento conhecido afiança esta conjetura do primeiro grande biógrafo do Infante, repetida frequentemente como verdade assente, e se é certo que também não existe qualquer testemunho documental que claramente abone a nossa maneira de ver, afigura-se-nos, no entanto, que só ela se harmoniza coerentemente com a situação docente da Universidade do studo de Lixboa durante o primeiro terço do século XV e com o apreço pelas artes reales, que então se manifestou e sem o qual é inconcebível a génese dos Descobrimentos.

Tanto quanto é possível coligir-se dos secos documentos que constituem o chamado Livro Verde, o quadro docente da Universidade à data da doação do infante D. Henrique podia comportar três lentes de Leis, três de Decretais (Cânones), quatro de Gramática, dois de Lógica, um de Física (Medicina), um de Teologia, um de Música e um de Filosofia.

Deixando de lado o ensino das disciplinas maiores, ou sejam a Teologia, as Leis, os Cânones, a Medicina e, possivelmente a Filosofia, cujo objeto e finalidade no plano de estudos é de crer que fossem ainda entre nós as mesmas que Afonso o Sábio lhe havia reconhecido, verifica-se que o ensino titulado das disciplinas menores, ou das Artes, estava limitado à Gramática e à Lógica, no quadro do Trivium, e à Música, no quadro do Quadrivium.

Daqui se inferem três ilações:

Primeira: No quadro docente do Trivium não se faz menção de um lente de Retórica, donde poder estabelecer-se com fundamento que o ensino oficial das artes sermocinales compreendia apenas a Gramática e a Dialética. A doação do infante teria, portanto, completado o Trivium com o ensino da Retórica. Vejamos em que consistiam estas disciplinas.

A Gramática tinha por objeto capital o estudo do Latim e constava de dois graus: o elementar, no qual se aprendia por “livros menores”, e o superior, cujos textos eram “livros maiores”. O alvará de 22 de Outubro de 1357, dirigido por D. Pedro ao Reitor da Universidade de Coimbra, faz a distinção dos dois graus, e impõe a proibição do grau superior se lecionar fora da Universidade.

O grau inferior era de magistério livre; podia ser ministrado na casa dos mestres ou na dos estudantes e consistia na sucessão das seguintes aprendizagens: leitura, que se fazia pela Cártula, isto é, uma cartilha ou abecedário, a Regra, cujo objeto não sabemos determinar com rigor e que parece ter sido o formulário da escrita, as Partes, isto é, De partibus orationis ars minor, de Donato, adotado em todo o Ocidente e designado comummente de Ars minor, e o Gaton, isto é, o Catão, ou seja o Disticha Catonis.

A exígua documentação publicada não permite a reconstituição exata e minuciosa da vida escolar da nossa baixa Idade Média. Temos no entanto por muito verosímil que a aprendizagem da leitura, que se fazia, de algum modo, independentemente da escrita e da das contas, isto é, do algoritmo, que foi a expressão medieval dada ao conjunto das regras algébricas, começava normalmente pelos sete ou oito anos e se iniciava com a Cártu1a.

Com base no título, cremos que a Cártula era o abecedário ou cartilha que abria com o alfabeto, se continuava com algumas palavras curtas, para aprendizagem das sílabas, e se completava com orações, designadamente o Padre Nosso e o Credo, que serviam de texto para a leitura de frases.

Fossem ou não estes o fim e a composição da Cártula, é fora de dúvida que se praticava o método das repetitiones no ensino das primeiras letras e no dos rudimentos da Gramática, pelos anos em que o infante D. Henrique fez a doação (1431) de novas instalações à Universidade. Consistia o método em o mestre ler em voz alta a Cártula palavra a palavra, repetindo todos os alunos em coro a palavra lida tantas vezes quantas as necessárias para que eles fixassem a respetiva grafia associada à pronúncia. Daí serem estas lições muito ruidosas, sendo por esta razão que o infante D. Henrique estabeleceu na referida doação que o ensino da Gramática se fizesse em local independente, e de algum modo afastado, das salas onde se leriam as restantes artes:

 “... afora a gramática que he de grande arroido, a qual mando que se leea na casa de fora...”.

À Cártula cremos que se seguiam as Regras. Como acima dissemos, não é fácil determinar com exatidão o objeto deste compêndio; atentando, porém, no currículo escolar posterior ao século XII e na raiz da palavra com que ele aparece designado, e que é manifestamente tradução de Regulae, somos levados a crer que se pode identificar com uma Ars dictaminis, Ars dictandi, ou Liber dictaminis, cujo objeto era a aprendizagem da caligrafia associada à das regras da redação, da composição e do formulário de cartas, etc. A expressão Regulae ad artem aparece com este sentido na Summa dictandi, de Guido Faba (circa 1213- -1240)  e este facto convence de que a palavra Regras era a abreviação com que na gíria escolar se designava o compêndio que exarava umas Regulae, destinadas, como cremos, ao formulário da escrita.

Este processo de abreviação verificou-se, sem sombra de dúvida, com o compêndio designado de Partes, ou seja, a Ars minor, de Donato, também conhecida, como já dissemos, por De partibus orationis.

Este famoso manual que remontava a tempos do Império Romano, — Donato ensinava em Roma por 350 —, e atingiu ainda os da plena Renascença, no século XVI, tratava sumariamente das oito partes do discurso, a saber, o nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição e interjeição.

A sua fortuna escolar foi geral e constante em todos os países ocidentais, e, normalmente, o jovem estudante gramático dado por apto a aprender as definições elementares da Ars minor decorava-as conjuntamente com as sentenças morais que constituíam o Disticha Catonis.

Os aforismos deste famoso sentenciário serviam de primeiro compêndio de leitura, tal como hoje entendemos, e eram lecionados paralelamente ao ensino das definições da Ars minor. O elevado custo dos manuscritos, a par do método usual de aprendizagem da escrita, determinou que o mestre ditasse o texto da lição, e que os jovens principiantes o fixassem na memória e, progressivamente, se exercitassem a escrevê-lo por cópia e ditado.


?>
Vamos corrigir esse problema