A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

A carência de informes não autoriza um juízo seguro acerca do ensino destas artes, isto é, em que condições foi estabelecido, se foi ou não lecionado, e por que compêndios e métodos. A falta de notícias do século XV acerca dos mestres das disciplinas recém-criadas, assim como o pouco crédito de que gozavam os graus conferidos pela Universidade de Lisboa nos anos imediatos à doação, parecem indicar que a inovação se não radicou com firmeza. Todas as conjeturas são admissíveis, desde que se encontra vedado o acesso à certeza. No entanto, um facto se ergue com incontestável realidade: o propósito do infante criar na Universidade, a par das artes sermocinales, que sempre se haviam lecionado, o ensino das artes reales.

Para o nosso objetivo, que importa de algum modo a sondagem nas preocupações intelectuais do infante D. Henrique, o apuramento deste facto é capital. Ele desentranha consequências várias, notadamente no que respeita à Universidade, o alargamento do quadro de estudos com disciplinas que, por um lado, traduziam o interesse pela cultura leiga, ou científica, tradicionalmente descurada por se não considerar o Quadrivium, salvo a Música, essencial à formação eclesiástica, e, por outro, o aproximavam bastante do quadro completo do ensino das Artes, cuja representação gráfica foi dada a preceito numa gravura da Margarita Philosophica, a divulgada enciclopédia de Gregorovius de Reisch saída a público pela primeira vez em Heidelberg, em 1496, e que aqui reproduzimos para cabal figuração da construtura didática das Artes, válida ainda para o tempo da doação henriquina.

Não partilha da substância destas opiniões o Dr. Duarte Leite, que, como ninguém, submeteu grande parte dos problemas henriquinos à fieira da mais severa crítica interna e de fontes.

A torre ascensional dos conhecimentos

segundo a Margarita Philosophica

A seu juízo, o Secreto de los Secretos de Astrologia não seria da pena do infante D. Henrique. “A escrever sobre astrologia, diz, o infante fá-lo-ia em português, e portanto o manuscrito da Columbina é apócrifo ou traduzido duma obra, que devia ser conhecida nos meios portugueses: ora não consta de nenhuma escrita pelo infante. Demais, se ele se desse à astrologia judiciária, sabê-lo-ia o seu cronista Zurara, que a praticava, e se não esqueceria de lhe mencionar a prenda, da qual não diz palavra, podendo aliás fazê-lo no cap. 7.° da crónica da Guiné, que termina interpretando o horóscopo do príncipe. Ele não devia crer na astrologia judiciária, a exemplo do irmão D. Duarte, que a condena no Leal Conselheiro”.

São argumentos realmente dignos de ponderação, como aliás tudo o que sai da pena de uma mentalidade tão afeita ao discurso lógico, mas cuja consistência se nos afigura menos densa do que à primeira vista parece. O seu exame intrínseco implica uma sondagem, que não é fácil, sobre alguns aspetos da situação cultural da época henriquina. Tentemo-la, contudo, apoiados uma vez mais no frágil bordão das correlações intelectuais e valorativas, ou por outras palavras, na apreensão das ideias e das aspirações que dão feição peculiar às sucessivas e mutáveis situações históricas.

Nos primeiros decénios do século XV, a língua castelhana não parece ter tido muitos cultores entre nós, mas no segundo terço, isto é, pela época da plena maturidade do infante D. Henrique, a literatura espanhola começou a ser prezada, como se colige de alguns factos que indicamos no estudo Sobre a Erudição de Gomes Eanes de Zurara e os historiadores da Literatura mais acentuadamente têm mostrado. Nasceram por então, isto é, por 1430-1460, quase todos os poetas que no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende poetaram em castelhano, e se há facto histórico-literário da segunda metade do nosso século XV que possa considerar-se incontroverso, embora não tão profundamente averiguado como convém, é a influência dos temas, dos metros, dos conceitos e da linguagem de Juan de Mena, dos Manrique, de Rodriguez da Camara, de Macias, do marquês de Santillana e outros.

Em tempos de tão generalizado bilinguismo, o infante D. Henrique não se diminuía, pois, sob qualquer ponto de vista, empregando o castelhano como língua literária. A estimativa vigente até talvez visse no facto uma manifestação de superioridade intelectual; no entanto, é na verdade singular, senão estranho, que a tivesse empregado, quando se não conhece uma só página em castelhano saída da pena dos irmãos, que aliás adotaram o francês para as suas divisas e motos. D. Henrique é, sob este aspeto, uma exceção, e consequentemente, reconhecida a fidedignidade dos registos de Fernando Colombo e de Argote de Molina, impõe-se uma explicação razoável do facto.

Quatro hipóteses acodem ao espírito: o Secreto de los Secretos de Astrologia era obra inteiramente original; era uma tradução; era cópia de um livro castelhano; era um apanhado ou miscelânea de apontamentos astrológicos ou astronómicos ou de ambos, com predomínio dos últimos, pois eram ténues as fronteiras da Astronomia e da Astrologia moderada.

A primeira hipótese não se apresenta com muito verosimilhança.

Com efeito, se o Secreto tivesse saído da escrivaninha do infante D. Henrique como saíram das de D. Duarte e do infante D. Pedro o Leal Conselheiro e o Trautado da virtuosa benfeyturia teríamos notícias de coetâneos portugueses a seu respeito, como temos das demais obras que os irmãos escreveram e não chegaram até nós. O facto da sua existência somente ser atestada pelos dois bibliófilos sevilhanos inclina a crer, quase irresistivelmente, que se não tratava de uma obra em que o infante D. Henrique houvesse posto o melhor do seu saber, com a aplicação do prolongado tempo que os escritos de intenção científica normalmente exigem.

Se fosse uma obra desta natureza, teria sido escrita e iluminada por bom calígrafo, como foram algumas das obras dos irmãos que até nós chegaram, e códices deste apreço deixam quase sempre sinal de si —, ou dito de outra maneira, não é crível que o manuscrito columbino fosse caligraficamente valioso, dada a ausência de qualquer menção particularizada e o preço relativamente barato por que ele foi comprado em Salamanca.

Tudo concorre, pois, para inculcar a opinião de que o Secreto de los Secretos de Astrologia não seria obra comparável aos livros de D. Duarte e do infante D. Pedro, assim na originalidade, como na extensão e no apreço da apresentação.

A segunda hipótese, isto é, a do Secreto ser uma tradução, teria consistência se existisse uma obra astrológica, em latim, notadamente com o título de que o escrito henriquino pudesse ter sido tradução.

Tal obra não existe, que saibamos, inúteis como foram as nossas diligências, donde o poder inferir-se que o Secreto não era uma tradução.

A terceira hipótese ocorre pela semelhança do nome do nosso infante com o do marquês de Villena, tio de Juan II de Castela, Don Enrique de Villena, ou de Aragão († 1434), robustecida pelo facto deste prócere se haver dado ao estudo da astrologia e até ao das ciências ocultas.Demais, dando-se ainda a circunstância do marquês de Santillana (1398-1458), correspondente do sobrinho do infante D. Henrique, o Condestável D. Pedro (hic, p. 28) e autor das Coplas al muy exçellente é muy virtuoso señor Don Alfonso, rey de Portugal (hic, p. 163), ter sido amigo do marquês de Villena, poderia ter-se dado o caso de haver remetido para Portugal um manuscrito astrológico do ilustre prócere, cuja morte deplorou na Defunssión de Don Enrique de Villena, senor docto e de exçellente ingenio:

Sabida la muerte daquel mucho amado,

mayor de los sabios del tiempo presente,

de dolor pungido, lloré tristemente

e maldixe Antropus, com furia indinado.


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