Introdução ao Fédon de Platão

É uma empresa talvez ainda mais conjetural que a da cronologia; não obstante pode pensar-se com Robin, na discreta introdução à sua edição e tradução do Fédon (Paris, Les Belles-Lettres, 1926, p. VIII), que quando Platão o compôs já tinha regressado da segunda viagem pelo Egipto, por Cirene, pela Sicília e pela Magna Grécia, era o Mestre da Academia, que havia estabelecido no jardim de Academos por 388-387, estava de posse de um método de investigação, a dialética, e de um método de ensino, a maiêutica, de uma teoria do conhecimento e do ser, e firmara a orientação matemática do pensamento, a qual talvez tivesse dado a conhecer pouco antes no Ménon.

Levando a sondagem com outra direção, pode ainda dizer-se com Luigi-Stefanini, que se o Fédon mostra que os escolares da Academia deviam conhecer a teoria central do Platonismo, o leitor moderno que siga a série ordenada dos diálogos também pode conhecê-la como eles. «O Crito, o Górgias, e o / Alcibíades, são a propedêutica remota da teoria das Ideias; o Ménon fornece um elemento essencial da teoria com a tese da reminiscência; o Hipias Maior, o Crátilo e o Eutifro constituem o tríplice apelo à realidade inteligível, sem a qual ficam sem solução os problemas do belo, da linguagem e da religiosidade; o Carmides e o Lisis demandam um objeto absoluto relativamente à ciência e ao amor; o Eutidemo e o Clitofonte mostram a vacuidade da ciência e da virtude onde falte este objeto. Finalmente, o eidos do belo é revelado no Banquete, com os caracteres de objetividade, incorporeidade, transcendência, autossuficiência, simplicidade, eternidade e imutabilidade».

A esta luz, quando Platão escreveu o Fédon a teoria das Ideias carecia apenas da revelação mística, sendo este testemunho que no juízo de Stefanini o diálogo apresenta, ao sustentá-lo com o calor da fé na imortalidade.

O Fédon integra-se, pois, na sucessão da obra platónica, mas o pensamento que nele esplende irradiava da mente de Sócrates, o mestre, por cuja boca ele se exprime, ou da de Platão, o discípulo, por cuja mão ele foi escrito?

Se a determinação do lugar que o Fédon ocupa na ordem cronológica dos diálogos é, como dissemos, um caso particular da «questão platónica», a resposta a esta pergunta está também relacionada com outro debate que lhe é confinante e não menos árduo e complexo: a chamada «questão socrática».

É que Platão só falou em nome pessoal nas Cartas e nas Leis; nos demais escritos é pela boca de Sócrates, como interlocutor capital, que ele expõe as mais variadas e até divergentes conceções e atitudes. Nuns, Sócrates é acima de tudo o dialético subtil e penetrante, inexcedível na arte de interrogar, e o ironista que apenas possuía o saber do não-saber; noutros, é o moralista, desatento aos problemas que a natureza levanta e pouco destro na sondagem metafísica, noutros ainda é o metafísico com ideias assentes sobre a epistemologia e os diversos modos do ser. Por mais larga que seja a quota que se atribua a Sócrates, há necessariamente uma parte que pertence a Platão, tanto mais que se há diálogos que coincidem, no geral, com os demais testemunhos, sobretudo de Xenofonte e dos semi-socráticos, sobre o ensino de Sócrates, não faltam outros em que as ideias neles expostas estão em desacordo com o que sabe -ou julga saber do ensino socrático.

Levaria longe, desviando-nos do nosso objetivo imediato, o simples relato das origens, das vicissitudes e da problemática desta vexata quaestio; por isso, resumiremos em breve compêndio apenas o que mais importa à historicidade do Fédon.

Como nos temas anteriormente indicados, oferecem-se critérios diferentes para a apreciação histórico-filosófica dos escritos platónicos.

O mais antigo, apontado por Aristóteles na Metafísica e por Cícero no De finibus, reparte-os em dois grupos: os escritos que exprimem com mais fidelidade o ensino de Sócrates, nos quais se vinca, por consequência, a atitude de discípulo, e os escritos em que Platão é já mestre, e expõe, portanto, o seu próprio pensamento, embora o faça pela boca de Sócrates. Neste critério, ou mais exatamente, nesta classificação dos escritos platónicos, o Fédon é considerado como um diálogo original de Platão, no qual expôs ideias que lhe eram próprias, notadamente, como inculca Aristóteles, no que respeita à teoria das Ideias e à Física.

Foi este critério geralmente recebido até fins do século XVIII. Com o século XIX, que foi o século da Crítica e das Ciências da Vida e da História, surgiram novos pontos de vista, a começar com a tradução de Platão (1804), empreendida por Schleiermacher.

O insigne teólogo, filólogo e filósofo associara na compreensão da obra platónica o rigor filológico, a crítica interna filosófica e a própria interpretação estética, e porque conjugara tão admiráveis dotes com o impulso da conceção de Herder e de Schlegel — a obra de um grande escritor constitui um todo dominado por um ritmo interno que lhe é próprio e lhe imprime feições peculiares —, a qual haveria de orientar ainda os primeiros trabalhos de Teófilo Braga, o fundador da História da Literatura Portuguesa, Schleiermacher, foi levado a ordenar os escritos de Platão sob o pressuposto de que todos eles tendem para um fim, o qual seria expresso pelas conceções do Timeu, do Crítias e da República, a cujas conceções as Leis se aditariam à maneira de apêndice.

A esta luz, o Fédon seria um diálogo preparatório da filosofia de Platão, isto é, da marcha que o pensamento pessoal do filósofo empreendera no sentido de ultrapassar o ensino de Sócrates.

Desde então, com critérios diversos, extrínsecos, internos, filológicos e estilométricos, jamais cessou o esforço no sentido de se delimitarem as zonas do pensamento socrático e do pensamento platónico, e consequentemente, para empregar adjetivos tornados famosos pelo paroxismo da exegese crítica, o intento de separar o Sócrates «verdadeiro» do Sócrates «falso», e de se discriminar na expressão do pensamento de Platão a sigla socrática da marca original. Demais, seriando e ordenando os diálogos, Schleiermacher legara ainda o árduo problema de saber se a obra de Platão é suscetível de uma construção sistemática, ou se, pelo contrário, cada escrito só consente que se lhe considere a autonomia e peculiaridade irredutíveis.

O que a erudição e a sagacidade alcançaram neste domínio é hoje vastíssimo e complexo — tão vasto e complexo que só a difícil competência de alguns dotes naturais e de certos recursos especializados permite a entrada em tão densa floresta de factos controvertíveis, de aporias insolúveis, de juízos antagónicos, de opiniões dubitáveis.

Pelo que ao Fédon importa, não faltam, com efeito, as mais divergentes interpretações e pontos de vista. Começam, palidamente, no objetivo supremo do diálogo, e afirmam-se com vigor invencível, no que respeita à historicidade do acontecimento que ele narra e à atribuição da autoria das ideias que defende.

A opinião antiga, de todos os tempos, e que é a do leitor despretensioso, vê nele a justificação racional da crença na imortalidade. Com ser antiga e dominante não quer dizer que seja única, pois há quem nele leia o relato histórico da morte de Sócrates, a tragédia poética anunciada no final do Banquete (223 D), a imagem do que deve ser o verdadeiro filósofo, e ainda quem nele encontre digno de especial atenção o facto de «conter a substanciação teorética da primeira teoria lógica de Platão». A parcela de verdade que estas opiniões possivelmente contêm em nada diminui o claro predomínio do tema da imortalidade como assunto dominante da conversão.


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