Introdução ao Fédon de Platão

Se a determinação do assunto não oferece dificuldades, o mesmo já se não pode dizer relativamente à historicidade do acontecimento e das ideias. Por lhano e desprevenido que o leitor seja, é levado naturalmente a perguntar onde acaba a realidade e começa a ficção, visto encontrar no Fédon a esperança a par da certeza, a crença envolta na convicção, o raciocínio que pretende ser exato ao lado do raciocínio que não ultrapassa a probabilidade, factos que parecem verdadeiros ao lado de factos que parecem fabulosos, o mito a seguir à demonstração.

Comecemos pelo acontecimento. O derradeiro dia da vida de Sócrates passou-se efetivamente como Fédon o descreveu em Flionte? Estamos em face de um relato histórico ou de uma narração mais ou menos estilizada e imaginada?

Foi tradição ver-se o Fédon à luz de uma dedicação sem par na história literária e filosófica.

Admitia-se, com base em Aristóteles e outros antigos, que no decurso da sua longa e acidentada vida Platão nem sempre tivesse sido o expositor fiel das ideias de Sócrates, mas que jamais claudicara na exatidão do retrato do Mestre, de cuja vida se fizera memorialista dedicado e incomparável. O século da erudição e da crítica não deixou fora do seu julgado a velha opinião, e do vário que se tem escrito talvez seja possível agrupar em três juízos capitais: o Fédon narra fielmente o que se passou; a narrativa é uma ficção literária; o relato é a narração estilizada de um fundo verdadeiro.

A primeira opinião, de importantes consequências na história das ideias como adiante veremos, foi sustentada por I. Burnet e A. E. Taylor, dando-se o caso pouco vulgar de a terem apresentado no mesmo ano, independentemente um do outro. Para estes insignes platonizantes, a veracidade não oferece dúvidas: o Fédon relata o que se passou e se disse no derradeiro 'dia da vida de Sócrates.

A segunda opinião situa-se no polo oposto, e suspeito que ninguém a formulou com tão desenvolta audácia como o Prof. E. Dupréel ao apresentar Sócrates como o produto de uma ficção literária criada pelo nacionalismo ateniense em oposição aos sofistas, e julgar Platão como um compilador genial, que explorou «o ensino do passado sem a menor preocupação de unidade de doutrina, colhendo tudo o que lhe vinha à mão, teorias gerais, teses antagónicas, argumentos, rasgos de espírito, citações de poetas, e obtendo, em recompensa do seu labor, o ser reconhecido como o maior prosador de todos os tempos».

Há alguns contrastes entre o Fédon e o Fedro que têm sido e serão objeto de controvérsia. O juízo terminante do mesmo crítico não hesitou, contudo, em decidir que «nem um nem outro destes diálogos nos dão sobre as ciências a opinião autêntica de Sócrates, nem tão-pouco o resultado das especulações originais de Platão: nestes dois escritos Platão recorreu a fontes diferentes; no Fedro inspira-se de Hípias o enciclopédico, no Fédon, em qualquer outro pensador» (ibid., p. 86).

A terceira opinião, de matiz variado, pode talvez sem atropelo sintetizar-se no juízo que considera pouco verosímil o relato tardio de uma discussão que se prolongou continuadamente do sol-nado ao sol-posto. Assenta sobre um fundo verdadeiro, porque, se o não tivesse, a memória de Sócrates e o crédito literário de Platão seriam arrastados nas praças e arcadas de Atenas pela chacota dos tagarelas e maldizentes. A discussão, no entanto, seria a reconstituição estilizada de Platão cujo génio criador se não teria apagado no ofício humilde de simples narrador. A circunstância que deu ensejo ao diálogo, assim como as cenas inicial e final seriam históricas; o resto, criação mais ou menos livre do seu génio.

Em tão complexa matéria, sem o apoio robusto de alguns factos concludentes, todas as hipóteses têm a porta aberta. Foi o próprio Platão quem as abriu, ao explicar, como já dissemos, com palavras de incerteza a sua falta entre os companheiros de Sócrates; admitimos, não obstante, que, por mais larga que se repute a quota da fabulação na contextura dos diálogos, não é crível que Platão, que escrevia para atenienses, tivesse recorrido ao nome de indivíduos, mais ou menos conhecidos em Atenas, para urdir a comparsaria de cenas inteiramente fictícias. O pensamento poderia pertencer-lhe como seu próprio, mas o entrecho deveria ser, pelo menos, verosímil e radicar na realidade vivida ou acontecida. Por isso, subscrevemos o juízo de Wilamowitz-Moellendorff quando pensa que se na Apologia e no Crito Platão escreveu o que de todos os atenienses era sabido, no Fédon só notou o que pôde alcançar.

É-se, assim, levado a distinguir a historicidade dos factos da historicidade das ideias. Mas é legítima a distinção?

Este é o problema nuclear da «questão socrática»: discriminar o que é de Sócrates do que pertence a Platão. Os juízos sobre o assunto formam hoje um labirinto no qual se extravia quem não seguir atentamente o roteiro dos factos capitais; por isso, cremos que o critério mais seguro para apurar o que pertence especulativamente a Sócrates continua a ser o de Zeller: completar Xenofonte com Platão, recorrendo-se a Aristóteles como árbitro. Com este viático consideremos rapidamente a «questão» no Fédon.

Sobressaem duas teses antagónicas: o diálogo exprime o pensamento de Sócrates; o diálogo exprime o pensamento de Platão.

A primeira tese, intimamente ligada à da historicidade do relato, foi sustentada por Burnet e Taylor: Sócrates colheu a doutrina das formas no Pitagorismo, do qual teria sido um continuador livre, sobretudo depois da saída de Filolau para Itália.

Como se vê, a tese confere a Sócrates as teorias da reminiscência (anamnesis), das Ideias e da alma, numa palavra, o que constitui filoficamente a fundamentação da imortalidade. Platão teria sido o prosador e o memorialista dedicado e fiel do lance dramático e das ideias do seu Mestre.

Foi no próprio Fédon que os insignes socratizantes colheram os mais robustos fundamentos da opinião —, mas é também este diálogo que mais eficazmente os mina e abala.

A redução de Platão à humilde obscuridade de um noticiarista, pelo menos até ao tempo em que escreveu o Fédon e a República, não se acorda com os dotes literários e intelectuais que a estimativa dos séculos jamais lhe regateou, nem tão-pouco com a circunstância destas obras mestras serem da maturidade. A dúvida surge, pois, incoercivelmente, mas o que a transforma em quase certeza é o silêncio de Xenofonte acerca das conceções metafísicas de Sócrates, é o retrato de Sócrates que Platão traçou nos diálogos da juventude, é, sobretudo, o testemunho de Aristóteles, contra o qual, aliás, se ergueram os insignes críticos. Robin, que sobressaiu notavelmente na refutação da tese, cremos que mostrou iniludivelmente a maranha de dificuldades a que ela conduz no que respeita às origens e relações do pensamento socrático e pôs uma vez mais a claro as afirmações categóricas de Aristóteles na Metafísica e na Ética a Nicómaco: Sócrates descobriu a indução e a definição, mas não se ocupou da «física» nem atribuiu aos conceitos a existência separada; Platão foi o criador da teoria das Ideias, a quem pertence também, e aos seus discípulos e continuadores, a doutrina das ideias-números, que é um desenvolvimento daquela teoria.


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