Introdução ao Fédon de Platão

Por isso, filosofar é libertar-se do corpo para se ocupar da alma, isto é, ir deixando morrer a presença e as solicitações do corpo na realidade viva da consciência e do pensamento que, rendido à purificação moral, se rende ao mesmo tempo à única coisa digna de amor: a verdade.

A confiança de Sócrates na viagem que iria empreender quando bebesse a taça de cicuta não era, pois, destituída de fundamentos; por isso, os exporá desenvolvidamente perante o juízo crítico dos amigos, com a subtileza, a profundidade e a arte que tornaram famosos os seus interrogatórios, as suas refutações e as suas apologias

Assentava, como é óbvio, na pressuposição de que a alma só conhece verdadeiramente o seu fim próprio quando separada do corpo, mas a pressuposição implicava a existência de duas fases temporais que cumpria esclarecer: a da vida terrena, e a da vida ultraterrena.

Até agora, Sócrates havia invocado sentimentos e anelos da crença religiosa, embora profundamente racionalizados, e por outro lado era compreensível que a ascese e a meditação da morte, isto é, o repúdio das coisas terrenas, fossem a condição e o objeto do filosofar durante o tempo em que a alma está ligada ao corpo para formar, como se irá dizer mais tarde, o composto humano; mas o que garante a razão que no momento da morte do corpo a alma não pereça simultaneamente com ele, e em vez de perdurar corno essência imperecível se extinga como sopro volátil?

Levanta a dúvida Cebes, o mais arguto dos interlocutores, dividindo-a em dois quesitos: se a alma sobrevive ao corpo, e, dado que sobreviva, se conserva atividade e pensamento.

Com a resposta de Sócrates começa propriamente a demonstração da imortalidade da alma, tomando assim o diálogo um rumo no qual, de certo modo, a consciência filosófica ocupa o lugar que até então ocupara a incitação da crença na transmigração das almas. O anseio da consciência religiosa não cessa de latejar sob a argumentação socrática, com tal vibração que não falta quem pense que o Fédon radica primariamente no sentimento religioso; no entanto, nesta fase da conversação como que sofre uma pausa e fica na sombra pelo clarão mais vivo da luz da razão.

O primeiro argumento tem por fim demonstrar a persistência da alma para além do perecimento do corpo. É chamado o argumento dos contrários.

Em resumo, consiste em mostrar que se a morte nasce da vida, a vida nasce da morte, e se o trânsito da vida à morte se chama morrer, o trânsito da morte à vida chama-se reviver. A sucessão cíclica dos estados exige pois, logicamente, que as almas persistam algures para voltarem a reincarnar-se em novas composições corpóreas. Consequentemente, a alma é princípio imorredoiro de vida.

A origem do argumento é confessadamente atribuída à crença na metempsicose partilhada por Órficos e Pitagóricos; porém, Sócrates transpõe este fundo religioso, de fé no mistério, para o plano racional, desfibrando e integrando o raciocínio nele latente na conceção geral da sucessão dos contrários, à qual não é ousado atribuir também, como é geralmente reconhecido, a influência da teoria de Heráclito.

Por toda a parte, e sempre, a observação atenta oferece o espetáculo cíclico da sucessão dos contrários: o que é maior nasce do que é menor e vice-versa, o que é feio do que foi belo, e vice-versa. Todo o contrário nasce do seu contrário, e se esta é a lei geral, forçoso é que a morte nasça da vida e da vida nasça a morte, porque se assim não fosse, a marcha dos acontecimentos da Natureza caminharia numa única direção, vindo o Universo a imobilizar-se na uniformidade e, portanto, na inação. As manifestações da vida cessariam.

A sucessão dos contrários exige que se alternem a vida e a morte, e portanto que as gerações se renovem; mas não implica que ressurjam necessariamente as mesmas almas individuais. Por outras palavras: o   argumento, se prova a existência da imortalidade, não prova que a imortalidade seja pessoal.

Como observou Windelband, Platão conclui que a alma é imortal no sentido teológico-popular da palavra, por ter identificado a expressão athanaton (cujo significado exato é: «que exclui a morte») com a indestrutibilidade (anolethron). Se esta errónea identificação fosse exata, diria respeito à alma com o significado genérico de força vital e não como sujeito religioso.

O segundo argumento visa a demonstração da pré-existência da alma ao corpo. É chamado o argumento gnosiológico. Pode dizer-se que se o argumento anterior apresentou a alma como princípio de vida, este vai apresentá-la como pensamento, ou melhor, como essência solidária intrinsecamente com as Ideias imutáveis e imperecíveis.

O seu esquema é, também, simples: se aprender é recordar, há que admitir que antes do nascimento a alma viu o que depois do nascimento recorda.

O argumento é simples nas linhas gerais, mas complexo na contextura.

Quanto à origem, há quem o considere, como Robin, em imediata conexão com o argumento anterior por partir do termo a que este chegara — a ideia de revivescência, a qual, com o esquecimento, constitui um dos processos intermediários dos dois contrários, saber e ignorar; e há também quem nele veja, como no anterior, a mesma inspiração órfico-pitagórica.

Quanto à estrutura, retoma a teoria da reminiscência (anamnesis) já exposta no Ménon, mas considera-a de maneira diferente.

Na essência, a teoria consiste em considerar a ciência ínsita no espírito de todos os homens, sejam cultos ou incultos; no entanto, a relação da experiência sensível da vida no presente com o saber anterior apresenta-se com feições peculiares em cada um dos diálogos.

No Ménon, a experiência atual é qualitativamente idêntica à da vida anterior, diferindo desta apenas quantitativamente. Por isso, o saber, que é sempre recordar, considerado quantitativamente, não é igual em todos os homens, embora o possa vir a ser se eles descobrirem e aclararem o que lhes está ínsito na alma.

No Fédon, pelo contrário, a experiência anterior é considerada como fundamento ideal da experiência atual, de tal modo que esta é irredutível àquela e sempre lhe fica distante na perfeição do conhecimento.

Segundo este diálogo, a existência das ideias não é explicável pela experiência sensível, que só proporciona conhecimentos deficientes e precários. A perceção sensível de um objeto ou coisa nunca coincide com a ideia pura desse objeto ou coisa. Falta-lhe sempre algo. Vendo, por exemplo, uns pedaços de madeira de configuração igual pode acudir ao espírito a ideia de igualdade, mas esta ideia não provém dos objetos. Estes despertam-na, mas não a geram, porque a ideia pura de igualdade não existe em nenhum dos objetos, que podem parecer-nos iguais entre si mas que já o não são se os compararmos a outros de dimensões diferentes.

Quer dizer: os objetos da perceção sensível podem ser maiores ou menores conforme os termos da comparação, e portanto o que é igual num caso será desigual noutro; a ideia pura de igualdade, porém nunca pode devir desigual. É imutável, sempre idêntica a si mesma. Por consequência, o conhecimento da ideia pura de igualdade não provém da perceção sensível; pelo contrário, esta é que dá ensejo, mediante o que hoje se designa por associação de ideias contíguas ou semelhantes, cujas leis, por assim dizer, foram pela primeira vez notadas por Platão no Fédon, a que o espírito encontre em si próprio esta ideia, cuja existência é anterior à sensação.


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