Introdução ao Fédon de Platão

 

Começa por delimitar o terreno, resumindo as duas objeções, e estabelece depois como ponto de partida da sua refutação o facto de Símias e Cebes terem reconhecido a validade do argumento da reminiscência e, portanto, a pré-existência da alma.

Admitindo isto, julga que as objeções são incoerentes e, portanto, inconsistentes.

Com efeito, em resumo, observa Símias, em primeiro lugar, que a alma não é harmonia do corpo por ser anterior à formação do corpo, e do acorde é absurdo dizer-se que a harmonia é anterior à lira. Por outras palavras: a alma não depende do corpo; a harmonia, pelo contrário, depende das cordas e da respetiva vibração.

Em segundo lugar, se a alma fosse intrinsecamente harmonia não podia ser mais ou menos harmónica, como não podia ser mais ou menos alma. Era o que era, e não podia deixar de ser; por consequência, todas as almas seriam iguais e, portanto, não poderiam diferençar-se pelas ações. A teoria de Símias levava, assim, ao absurdo da equiparação de todas as almas na bondade, além de tornar inexplicável o vício, visto que este seria sinónimo de desarmonia da alma, e, como é óbvio, a alma que deixasse de ser harmonia deixava de ser ipso facto alma.

 

Finalmente, se a alma fosse harmonia do corpo não poderia dirigi-lo, como cada qual pode apreender em si próprio pelo papel ativo ou inibitório da sua vontade.

Daqui a conclusão de que a alma é independente do corpo e além disso, como observou Robin (Not. cit., XLIV), «dois resultados positivos. Um é que a alma tem essência própria, a qual não comporta graus. O outro consiste em que as determinações desta essência e das suas propriedades são relativas ao bem e ao mal; o que implica que a sua ação sobre o corpo não seja puramente mecânica, mas relativa aos fins próprios da alma, que são morais».

A objeção de Cebes era mais penetrante; atingia a estrutura íntima da conceção socrática, situando a alma na ordem dos seres da Natureza sujeitos à geração e à corrupção, e como que deixava Sócrates na atitude caricata de confiar numa crendice desprovida de fundamento racional.

Como cumpria, a réplica é mais profunda e extensa que a dada anteriormente a Símias, assinalando mesmo o trecho capital do diálogo, por conter a narração histórica da evolução do espírito de Sócrates relativamente à conceção da realidade física e uma exposição da teoria das Ideias, que Lustolawski considera ter sido a primeira que Platão fez demonstrativamente, depois de a haver sondado no Crátilo e de a ter apercebido no Banquete.

Estabelecida a discussão no terreno para onde Cebes a levara, o objetivo de Sócrates consistiu em mostrar que a alma não pode perecer porque tem uma essência incorruptível. Daí, a exigência dialética de fixar previamente o sentido e as causas da geração e da corrupção no mundo físico, em ordem a poder examinar a posição que a alma ocupa na sucessão cíclica dos contrários.

Sócrates não entra de súbito na demonstração da tese, de cuja essência brotará, como veremos, um quarto argumento probatório da imortalidade. Precede-a do reconto autobiográfico das suas primeiras inquirições acerca da Natureza, ou mais exatamente do interesse que quando moço votara ao estudo das causas pelas quais as coisas nascem, perecem e subsistem.

Ocupara-se por esses anos de assuntos diferentes, tanto em relação ao que se gera e corrompe no Céu e na Terra, como em relação ao Homem, designadamente se era do cérebro que provinham as sensações, destas as representações e destas os conhecimentos que constituem a ciência. Houve tempo em que chegou até a crer que havia alcançado o conhecimento de certas coisas, como por exemplo, a causa do crescimento do corpo humano, a razão do excesso de 10 para 8, etc., mas por fim convenceu-se que em vez de aprender desaprendera e que o método seguido pelos físicos — no sentido amplo que a palavra então comportava e no qual se compreendia o estudo da Natureza na totalidade das suas manifestações —, o não conduzia a resultados satisfatórios, por confundir a causa com o efeito. Enveredara, por isso, por outro caminho, o qual consistia em seguir o fio lógico da sua pessoal reflexão.

Ouvira um dia ler, talvez a Arquelau, na conjetura de Burnet, famoso editor e crítico do Fédon, além de sábio historiador da filosofia helénica, certa passagem de um livro de Anaxágoras na qual se falava da ação de um Espírito inteligente, ordenador e causa de tudo o que existe. Pareceu-lhe que essas palavras continham uma explicação diferente da que os físicos costumavam dar, e essa explicação, que já não confundia a causa com o efeito, pode sintetizar-se na noção de Providência que tudo dispõe pelo melhor.

Sob esta impressão leu depois avidamente todo o livro do filósofo que primeiro trouxe, por assim dizer, a Filosofia para Atenas, mas a breve trecho sentiu-se desenganado por ter de reconhecer que Anaxágoras se desviara da direção que parecia levar ao caminho da verdade para cair na rotina da explicação física tradicional. Anaxágoras não reparara, pensava Sócrates, que se o Espírito é o supremo ordenador, cada coisa ocupa o lugar que é conveniente que ela ocupe no conjunto de que faz parte; a explicação da ordem e sucessão das coisas no Mundo tem de ser inteligente, isto é, de natureza inteligível. Ora se, depois de se invocar o poder ordenador do Espírito, se apresentam causas físicas, como o ar, a água, o éter, etc., é evidente que se passa do plano da causalidade inteligente para o plano da causalidade desprovida de inteligência, e portanto se falseia a estrutura da explicação inteligente. Anaxágoras fizera, pois, a figura incoerente de quem argumentasse desta maneira:

Sócrates pratica as suas ações pelo Espírito; ora Sócrates está sentado e o seu corpo tem músculos e ossos; portanto, os movimentos dos músculos e a resistência dos ossos são a causa dele estar sentado.

Por outras palavras: Anaxágoras confundira a causa, que é espiritual, com os meios de execução, que são materiais.

Sócrates rompera, assim, com o método de explicação última da realidade por causas puramente físicas e de passo havia apreendido que a verdadeira explicação tinha de ser inteligível e devia ser investigada por método lógico. Lançou-se, por isso, numa «segunda viagem» com rumo à descoberta da causa que une e mantém as coisas em coesão, e nessa viagem, que representa um passo decisivo do pensamento de Platão, que não do Sócrates histórico, deparou com a existência de uns seres a que chama logoi.

O sentido exato desta expressão apresenta dificuldades, cuja diversa solução implica interpretações diferentes do sentido e da marcha do pensamento platónico, mas o comum dos intérpretes consideram-na como que sinónima das ideias, escrevendo M. Valgimigli, no seu comentário (Il Fedone, Palermo, 1929) que os « logoi a que talvez não corresponda adequadamente a nossa palavra conceitos, são em substância as ideias ou pelo menos a forma pela qual as ideias se manifestam à nossa mente ».

O saber verdadeiro não reside, pois, no mundo que as sensações oferecem nem se alcança tão-pouco pela mediação dos sentidos: está nas ideias, como essência dos seres, e só se atinge pela concordância lógica, isto é, como observa Burnet, pelo método dedutivo, com o qual os geómetras do século V haviam obtido grandes progressos.


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