Introdução ao Fédon de Platão

A conclusão impõe-se: a parte especulativa do Fédon pertence a Platão, que não ao Sócrates histórico. O tema da imortalidade teria surgido, naturalmente, como assunto de conversação na roda de amigos que assistiam à hora extrema de Sócrates, perante a assombrosa serenidade do Mestre; o desenvolvimento e a fundamentação metafísica da crença na imortalidade, que o Sócrates da Apologia não afirma e de que até parece duvidar, são de Platão. O que verteu, porém, o filósofo na conceção da imortalidade e como a conciliou com a teoria das Ideias?

É o derradeiro problema sobre o qual cumpre fazer alguma luz.

No Fédon, a alma é pensada como realidade meta-empírica, simples, pré-existente e pós-existente às suas incarnações corpóreas, nas quais atua como princípio de vida. Por isso, em face de tão genérica conceção, desprovida de análises e de descrições, suscetível de determinações diversas, surge naturalmente o problema de saber se Platão teve em vista a imortalidade pessoal ou impessoal, isto é, da razão universal, ou ainda a da espécie humana.

Antes, porém, cumpre assentar que as numerosas referências dos diálogos à imortalidade exprimem uma crença e uma convicção sérias, quer se apresentem discursivamente, quer sob a forma de mitos, e que o fundador da Academia não confundiu o conceito de imortalidade com outros conceitos que lhe eram de algum modo afins.

Luís Couturat sustentou na sua tese De Platonicis mythis (Paris, 1896) que Platão não acreditara na imortalidade da alma, dentre outras razões porque as palavras com que exprime esta ideia não têm sentido claro e preciso, que a prova do Fedro seria mítica e que a presença do inteligível no sensível torna inútil, se é que não exclui, a imortalidade. O que escrevera a tal respeito tinha, pois, a marca da ficção.

A paradoxal opinião, digna de referência principalmente por provir de um talento insigne na teoria e na história da Lógica, não teve eco, nem o podia ter por ser manifesta a seriedade da convicção de Platão. Não há dúvida que Platão mitificou com frequência relativamente à vida futura da alma e que os seus mitos mais característicos são precisamente os mitos escatológicos; mas também não há dúvida que mitificou onde lhe faltavam recursos para o raciocínio discursivo e que se não cansou em excogitar com sinceridade, sem fingimento e reiteradamente, provas que justificassem perante a razão a crença na imortalidade.

Crente e convicto da imortalidade, Platão não confundiu a imperecibilidade da alma com o redivivo impulso genésico da procriação «segundo o corpo e segundo a alma» (Banquete) nem tão-pouco com o sentimento da posterioridade do nome.

O seu conceito de imortalidade oferece, como veremos, dificuldades várias, mas contém manifestamente a nota fundamental e característica da sobrevivência anímica.

Por isso, se não confunde com o impulso procriador que, de certa maneira, participa do desejo de imortalidade, tanto biologicamente, pelo ser a que se dá vida, como espiritualmente, quando o amante consegue reproduzir-se e continuar-se na alma do amado; mas a procriação do amor, seja carnal, seja espiritual, sendo desejo de imortalidade, não é a imortalidade.

Se a imortalidade é coisa diversa da fecundidade física e espiritual do amor, também se não identifica com o sentimento da posteridade do nome.

Este sentimento é totalmente independente daquela noção, para cuja génese, aliás, parece ter concorrido, por implicar a valorização do indivíduo em relação à massa monoexpressiva do grupo social em que ele se destaca e sobressai. Pode existir e dar-se independentemente da crença na imortalidade; e que assim é, mostrou-o historicamente Werner Jaeger ao advertir que o grego dos tempos homéricos não teve propriamente a ideia de imortalidade mas sim a de perenidade do nome, como expressão da gratidão da cidade, e filosoficamente depreende-se do próprio ensino de Platão, quando pela boca de Diotima, no Banquete, celebra a posteridade, essencialmente social, do nome glorioso dos poetas e dos legisladores.

Como é óbvio, a crença que Sócrates afirmou e procurou justificar racionalmente perante o juízo crítico dos amigos que o acompanhavam na derradeira hora nada tem que ver, conceptualmente, com a perpetuidade grátula na memória dos homens — conceção que mais tarde haveria de ser exposta como significado possível da imortalidade e que talvez ninguém exprimisse com tanta coerência doutrinal como Auguste Comte, no Sistema de Política Positiva.

O Fédon foi escrito em tempos de plena individualização da consciência, sem a pressão comunitária das forças sociais, quando o próprio conceito e fins do Estado se haviam tornado assuntos problemáticos. Filósofos, como os Pitagóricos, e crentes, como os iniciados nos mistéricos órficos, já não concebiam a imortalidade com a antiga feição social; por isso, cumpre inquirir a noção que Platão verteu no alentador sentimento pela época em que escreveu o Fédon.

O imorredoiro diálogo foi quem trouxe pela primeira vez ao tribunal da razão a demanda da imortalidade, mas se justificou genericamente a realidade emotiva, metafísica e moral da ideia como que deixou hesitante e dúbia a respetiva especificação conceptual. Pelos anos imediatamente anteriores, designadamente no Banquete, Platão alude à «lâmpada da vida» que as gerações transmitem genesicamente umas às outras, mas carece de fundamento, como é evidente, a correlação que se estabeleça entre a noção de perpetuidade espermática da espécie humana e a noção de imortalidade defendida no Fédon. É esta que cumpre cingir, mas as dificuldades são tantas que a razão mal consegue, se consegue, sair do campo da conjetura para o da certeza.

Baseado em razões ontológicas e éticas, este diálogo estabelece, como vimos, a irredutibilidade da natureza da alma à do corpo, mas não esclareceu as aporias que a dualidade levanta.

A alma é simples, como implica a sua incorruptibilidade, ou multi-vária como parece exigir a variedade das suas funções?

Sendo pré-existente ao corpo, a sua pré-existência é sempiterna, isto é, sem princípio nem fim, ou eviterna, isto é, com princípio mas sem fim?

Se é eviterna, como pode ter em si própria, por determinação intrínseca, a razão da sua imortalidade?

Se é sempiterna, como pode coexistir com os corpos que se dão no devir, isto é, na realidade transitiva da geração e da morte?

Nenhuma destas dificuldades e aporias foi encarada de frente no Fédon, que fundamentalmente parece ser o desenvolvimento no plano racional da conceção ascética do mito final do Górgias: o imperativo dialético da continuidade da vida para que possa haver plena conformidade da virtude com a felicidade, dado que só os valores espirituais têm jus à perpetuidade.

Daqui ainda a dúvida sobre o sentido exato da imortalidade no Fédon. Será a alma pessoal dos indivíduos viventes, ou a razão impessoal que a todos os homens confere Hominidade e alcança a contemplação do saber universal e necessário? Será o princípio vital que dá persistência à espécie humana, ou ainda outra determinação de diverso matiz?


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