Sobre o humanismo português na época da renascença

Para obviar, sem dúvida, e, simultaneamente, para evitar a emigração de bolseiros e por ela o contágio das heresias, D. João III completou a reforma universitária com a fundação em Coimbra, magna cura et impensis (Buchanan), do Colégio das Artes.

André de Gouveia, grande pedagogo da Renascença e então principal do Collège de Guyenne, foi o organizador emérito da nova escola, cujas aulas de latim, grego, hebraico, matemática e filosofia se inauguraram solenemente em 21 de Fevereiro de 1548 com a De liberalium artium studiis oratio de Arnoldo Fabrício (Coimbra, 1548).

Verdadeiro Colégio Real, cuja independência da inspeção universitária trazia consigo não só o desembaraço administrativo mas a emancipação da imediata tutela teológica, a sua fundação representou como que a réplica portuguesa do Collège de France. Os estatutos de Paris e de Coimbra “quase todos são uns”, dizia-se, e para além das semelhanças dos respetivos regimentos, André de Gouveia quase transplantara para Coimbra um colégio francês. Com ele vieram de Bordéus Nicolau Grouchy, comentador de Aristóteles e futuro tradutor da História do Descobrimento e da Conquista da índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda, Guilherme Guerente, Arnoldo Fabrício, Elias Vinet, arqueólogo e matemático, que deu a conhecer em França a obra de Pedro Nunes, Jorge Buchanan, grande humanista, poeta e historiador escocês, e seu irmão Patrício, os portugueses Diogo de Teive, João da Costa e António Mendes, aos quais agregou, dos mestres estantes em Portugal, seu irmão Marcial de Gouveia e Mestre Eusébio.

Os nomes, de per si, dizem já muito, mas são muito mais eloquentes as obras que alguns mestres produziram, notadamente Nicolau de Grouchy no que respeita ao ensino da filosofia de Aristóteles, as quais só podiam vicejar com o alento de um ambiente verdadeiramente intelectual.

O ensino das Humanidades cobrou então novo vulto e mais vigoroso impulso, sendo de crer que nele pensasse o autor anónimo da Preparação Espiritual de Católicos (Coimbra, 1549), quando se justifica de haver transcrito no corpo da obra alguns passos em latim, dentre outras razões, por esta bem expressiva:

“A primeira he que eu fiz empremir este livrinho em Coimbra, onde, depois que sua alteza polla bondade de Deos, e por sua muita virtude creou e prãtou esta Catholica Vniversidade ha nella tantos e tam famosos letrados, e tantos e tam singulares latinos: e frorece nella tanto a lingua latina, que até os meninos que nam sabem ainda falar lingoagem, sabem já falar latim”.

O Colégio das Artes foi a última grande fundação de D. João III — porém efémera, se se considerar o primitivo intuito, porque o rei como que se temeu da própria obra.

Em 9 de Junho de 1548 morreu André de Gouveia, e nos dois anos posteriores a vida dos bordaleses de tudo conheceu: suspeitas, competições, invejas, lutas do principal, e por fim a prisão, nos cárceres da Inquisição, em 1550, “por sentirem mal da fé e serem da seita de Lutero”, de João da Costa, o principal, de Diogo de Teive e de Jorge Buchanan. Acusação exata para este, como ao depois se viu, mas não para aqueles, que apesar de familiares de luteranos e indulgentes para os inovadores e inovações, tudo leva a crer não haverem ultrapassado a religiosidade interior que o evangelismo parisiense advogou e, ao que parece, haviam assimilado como expressão ortodoxa do humanismo cristão.

Em 1555 o Colégio das Artes, já desfigurado, teve o termo ditado pela conjuntura política: a entrega à Companhia de Jesus. Nascera sob o signo da Contra-Reforma, e as vicissitudes e dramas da sua história não são mais do que a consequência do triunfo da remoçada conceção da vida, zelosa e militante no afã da unidade religiosa.

Começa então francamente, o reinado da pedagogia que mais tarde haveria de se estabilizar no Ratio studiorum e que até meados do século XVIII afeiçoaria a mentalidade de todos os estudantes portugueses. Heitor Pinto, na Imagem da Vida Cristã, faz ainda o elogio do Colégio das Artes; mas escreve no pretérito, objeto de história, que não realidade viva, e ao ritmo de quem julga um acontecimento do passado ou evoca uma recordação grata da mocidade.

O humanismo não fora apenas restituição erudita, culto da letra, colação de textos —, empresas que talvez nenhum português do século levou tão longe e ergueu tão alto como Aquiles Estaço.

Nalguns países e, sobretudo, nalgumas consciências, ele fletiu-se na diversidade de formas que o sentimento da emancipação interior pode suscitar; entre nós, porém, foi um movimento espiritual de equilibrado bom senso.

A meio caminho dos escolhos fatais do narcisismo nativista e da expatriação intelectual, os nossos humanistas não taparam os ouvidos aos apelos da renovação do gosto e do saber, nem desprenderam a alma da índole originária para a renderem com alvoroço estonteado ao pregão das novidades que desnaturam. Orgulhosos da terra em que nasceram, se não viveram sob a sensação do desterro de utópico reino da inteligência ou do bom gosto, também não esfriaram a alegria de conviver no retraimento da misantropia. O que torna inconfundível e sem par a sua obra, é a confiança na Natureza e no Homem, e pelo desenvolvimento da consciência, a projeção prospetiva.

Formalmente, o humanismo triunfara: a Contra-Reforma herdou-lhe os métodos. A coragem de afirmar, sem peias nem receios, e a alacridade do espírito, porém, como que foram postos em surdina, para darem passo às vozes inofensivas do conformismo e da reserva prudente; e em lugar da criação livre, o confinamento e a atitude comentadora, por vezes notável e até com repercussão europeia, como nos comentários aristotélicos dos Conimbricenses.


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