Sobre o humanismo português na época da renascença

O apetite das liberalidades e das recompensas aguçara, porventura, a pena esurina destes homens. Não se viu Erasmo, a quem o rei não correspondera, sequer ao menos com uma missiva, retirar a epístola dedicatória na segunda edição das Chrysostomi Lucubrationes (Basileia, 1530), e Luís Vives apreciar o brinde régio de um gomil cravejado e de uma mesa de ébano?

No entanto, através das mesquinhas cobiças de oiro reconhecia-se o valor de Portugal, sentindo-o conviva por direito próprio do simpósio do novo espírito europeu.

IV

A IMPORTAÇÃO DO HUMANISMO

Os ideais renascentistas cedo conquistaram os melhores espíritos. Sem grande extensão nem alarde, porém, porque no primeiro quartel do século apenas alcançaram uma pequena sociedade seleta de áulicos e de altos funcionários ou dignitários da Igreja.

Esta sociedade tinha por centro a corte e sem lisonja escrevia em 1533 João de Barros, que “a todos é notório quanto amor às letras, quanto favor, quanto amparo, quantas mercês recebiam dele [D. João III] os letrados de toda a ciência; este amor é causa de sua corte florecer hoje tanto em letras como florece; este mesmo o faz cuidar novas maneiras e novas invenções de estudos gerais, por onde as ciências em seu reino não menos cresçam e vão adiante, que as outras virtudes”.

A curta distância do paço, e ainda na mesma atmosfera áulica, como que gravitava em torno da infanta D. Maria, que a sua mãe se dirigia em latim, o grupo literário e erudito de que faziam parte a portentosa Luísa Sigêa e sua irmã Ângela, Joana Vaz, D. Leonor de Noronha e D. Helena da Silva.

Religiosa e moralmente, não se apagou na alma destas damas o fervor que aquecera o paço de D. Leonor, a Rainha-Velha, mas que diferença na sensibilidade literária e artística, apesar de comedida e de distante dos rasgos inimitáveis das donas de Itália, suas coetâneas!

Nas escolas, onde raros mestres sentiram a sufocação do ambiente, respira-se, no entanto, o ar espesso do saber medieval. A instituição das bolsas de estudo em Paris e alhures teve o efeito purificador da lufada renovadora, e se é certo que a maioria dos contemporâneos louvou o mecenato régio, não lhe faltaram contudo adversativas e críticas, inerentes, aliás, a todas as inovações. João de Barros, por exemplo, com ser homem do seu tempo e de espírito relativamente ágil, para explicar em que consistia o verbo neutro, formou, com evidente ironia, que a um tempo abrange as bolsas e os bolseiros cábulas, a seguinte oração: “Os homens que vão a Paris, e estão no estudo pouco tempo, e folgam de levar boa vida, não ficam com muita doutrina”.

O sentimento da grande obra, cujos intuitos e resultados insinuam uma lição sempre viva, venceu, porém, a estéril e impotente indecisão dos pormenores, e se alguma vez esteve em risco de soçobrar foi quando se ergueu a voz do orgulho nacional, expressa pelo magnífico Arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa. Convidado a contribuir para a sustentação dos bolseiros, dirigiu a D. João III (1527) uma longa epístola, que por inédita e pelo valor histórico merece ser divulgada:

 “(...) e por isso poderia mal contribuir nem aconselhar, que custa menos que Vossa Alteza fizesse colégio em Paris das rendas de vossa coroa, nem das prelazias de vosso reino, sendo feito em reino estranho que é França, o qual nunca foi muito amigo deste, nem temos visto sinal de amor, antes de muitas obras contrárias a ele. Olhe Vossa Alteza bem o acrescentamento que vossa coroa e reino recebeu de mui poucos anos a esta parte e que ganhastes novos reinos e senhorios pera vós; e desta maneira que outros reis cristãos ganhassem outros de novo, que nunca foram sabidos nem consentidos senão por muito trabalho dos reis vossos antecessores e morte de seus criados e vassalos naturais. E pois vos Deus fez tamanho não vos fiqueis vós, Senhor, menos do que vos lhe tem feito, e não cureis de mandar a Paris sessenta escolares a aprender teologia, mas mandai vir dela sessenta lentes, a modo de falar, porque até dez bastariam para tudo, e então fazei um colégio mui comprido e mui grande e de poucas pinturas e lavores, onde se leia Teologia e todalas artes e ciências que pera ela são necessárias, e faça-se em lugar conveniente pera isso, o que me a mim parece que seja esta cidade de Braga ou o Porto pela qualidade dos ares e temperança da terra. Pagai, Senhor, muito bem os lentes, e aos escolares que bem aprenderem e forem doutos fazei-lhe muita mercê. E não pareça coisa dificultosa trazer aqui os lentes de Paris pois vede... como o Cardeal e Arcebispo de Toledo... fez um colégio em Alcalá de dois contos de renda toda comprada à sua custa, afora a despesa do edifício, e trouxe de Paris tantos lentes e tão singulares letrados como ele quis escolher e lá ficavam. E com isto olhe como em Itália, em tempo que não era tão perseguida como agora, havia em todas as senhorias dela e assim nos senhorios de duques e marqueses estudos gerais e pessoas e lentes tão doutos, que a um só, que era Bartolomeu Sorino, eu vi dar em Florença mil ducados de conduta por um ano e quase deste preço eram muitos. E assim saberá Vossa Alteza que de vinte anos a esta parte são feitos em Salamanca seis colégios com rendas, sem fazer nenhum deles rei, nem senhor, nem prelado grande, somente um bispo de pouca renda..., afora o que faz agora o Arcebispo de Toledo, que será outro Alcalá.

 “Ora sendo isto verdade como é, como não fará Vossa Alteza um colégio mui grande e mui honrado em seu reino, sem requerer ajuda de prelados nem de cabidos... E não queirais, Senhor, matar este espírito de Deus que vos oferecem diante e se Vossa Alteza pelas rendas de sua coroa a não quiser fazer de todo faça-o pelas de Deus e de sua Igreja que herdou há tão pouco tempo e em tamanha quantidade... Porque Vossa Alteza não diga ou ao menos cuide que faço esta carta tão prolixa para me escusar da pouca despesa dos colegiais que podia manter em Paris... digo e afirmo por verdade como todos sabem que a primeira obra que desejei e tentei de fazer em chegando a esta cidade foi um colégio e sem começar outra o fiz saber a el-rei vosso pai, que Deus haja. Foi disso mui contente e louvou meu propósito e me prometeu renda para mantimento de nove colegiais cada ano e estando assim veio imiguo e sobre esta boa semente semeou cizânia de que agora não quero dar conta, a qual apagou a boa inspiração e a maneira pera se fazer obra tão necessária e proveitosa; porém se Vossa Alteza quiser fazer o colégio nesta cidade eu despenderei nele de maneira que seja mais necessária rédea pera que não despenda tanto que conselho para gastar...”.

O alvitre do famoso arcebispo bracarense, no qual se sente pulsar a emulação da obra levada a cabo em Espanha pelos cardeais Cisneros e Fonseca, representava possivelmente a voz do bom senso. Se se tivesse efetivado, o ritmo da cultura renascente talvez tivesse sido diverso, porventura de coloração mais tradicional e comedida, mas menos brilhante. Malogrado o plano, que só uma dezena de anos depois teve começo de execução em Santa Cruz de Coimbra e com a transferência e reforma da Universidade, é incontestável que a fisionomia das nossas escolas, e por elas a da cultura nacional, só se modificou após o regresso dos bolseiros, ou mais precisamente com a assimilação do espírito que a Europa latina do tempo vivia, especialmente nas formas, preocupações e anelos que animavam os mestres parisienses de Artes e de Teologia.

Transformação lenta e progressiva, cuja natureza fluente se furta à arbitrariedade de uma data, e se revelou com plena claridade em 1534, coincidente, aliás, com outras manifestações do espírito novo, notadamente nas artes plásticas.


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