Sobre o humanismo português na época da renascença

“Do que fez por elas, tinha ele quiçá exaltada consciência, visto como se gabava de ter trazido para Portugal as belas letras, tendo matado a sede a uma “turba imensa” de velhos e de novos...

“Que eu saiba, ninguém até hoje pôs suficientemente em relevo (se acaso a suspeitou) a importância da sua missão em Portugal, relegando-o todos para a modesta, exclusiva função de preceptor do bastardo do príncipe perfeito. E todavia a isso se não limitou a sua ação; mas, muito mais extensa e intensa, ela bem merece um lugar de realce na história do humanismo em Portugal.

“Além da correspondência latina dos dois reis que serviu; das sonoras orações de sabor clássico que fez,... além dos castigados poemas que compôs, e lhe não renderam o oiro que esperava,... dedicou-se com o ardor de um pedagogo do Renascimento a “expulsar a barbárie” já por meio de cuidada correspondência como tirocínio para apurar o gosto”.

Nesta visão fugitiva do italianismo não basta considerar a existência de italianos em Portugal, cujo número aumentou depois do regresso de Vasco da Gama da Ilidia, dedicados pela maior parte às atividades mercantis; impõe-se, acima de tudo, a sedução que a própria Itália exerceu no espírito dos portugueses que a visitaram.

Nas cortes de 1473, o estado popular denunciava como calamidade económica as viagens e os réditos enviados para Itália. “Que se não concedesse licença aos prelados do reino para passarem a Roma, a pretenderem capelos”, diziam, e “que os prelados e desembargadores do reino, que estivessem em Roma, se recolhessem a ele para não gastarem as rendas fora”.

Com estas viagens, empreendidas quase sempre na mira de benefícios e honrarias da Cúria, se nem sempre se importava o culto da antiguidade, trazia-se pelo menos a fascinação da exuberante vida de alguns principados italianos. Em 1527, na Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos, ainda se diz que “eu ter-me-ia ao torrão de Portugal, a que em sua quantidade sobeja tudo, se a cobiça da Itália e as delícias da Ásia o não devassaram”, e desta cobiça de Itália, sublimada pela sensibilidade estética e sorvida em faustos profundos, ninguém falou com mais autêntico entusiasmo que Francisco de Holanda, um dos mais vibráteis viajantes deste século de viajantes e de cosmopolitas, nesse Tratado da Pintura (1558), que é um dos grandes livros da Renascença:

“Como minha tenção em ir a Itália (1538) não foi por buscar outro mor proveito nem honra que fazer bem, e àquela fora do meu Rei enviado, nem trazia nenhum outro interesse ante os olhos de privar com o papa nem cardeais em a corte. E isto sabe-o Deus e sabe-o Roma, que se eu nela quisera morar, por ventura não me faltara possibilidade, assi por mi mesmo como por favor de principais pessoas em casa do papa. Porém todo este pensamento andava ante mi tão apagado, que nem somente mo deixavam passar pela imaginação outros que eu trazia mais nobres e do meu gosto, os quais muito mais em mi podiam que nenhuma cobiça de benefícios ou speitativas, para siquer trazer comigo, como fazem os que vão a Roma. E o que só me era sempre presente era o em que poder servir com a minha arte a El-Rei nosso senhor, que me lá mandara, cuidando sempre comigo, como poderia roubar e trazer a Portugal roubados os primores e gentilezas de Itália, do contentamento de El-Rei e dos Infantes e do sereníssimo senhor o Infante D. Luís”.

Estes “primores e gentilezas de Itália” eram sinónimo de requinte espiritual e do culto do antigo, tão claro e absorvente que se não compreendia sem o desprezo pelo velho, isto é, o medieval ou bárbaro.

Quantos, viajantes ou bolseiros do rei, como Holanda, penetrados deste culto, dessedentaram na Itália a curiosidade de saber e de compreender!

A cultíssima e platonizante Florença dos Médicis, tão cio agrado de D. João II, foi nos primeiros tempos desta emigração a cidade eleita, e dos mestres florentinos, Angelo Policiano (1454-1494) o preferido. Em 1489 ouviam-lhe as lições os três filhos do chanceler-mor João Teixeira Lobo, um dos quais, Luís Teixeira Lobo, mais tarde mestre de D. João III, manteve com Erasmo, na própria Itália, “relações não menos agradáveis que amistosas”, como o estupendo sábio de Roterdão recordou numa epístola (24-111-1527) ao piedoso, inserta nas Chrysostomi lucubrationes.

João Rodrigues de Sá Meneses, defensor da aliança da nobreza do brasão à das letras, Martinho de Figueiredo, referido já em páginas anteriores, Aires Barbosa e Henrique Caiado, que em Pádua conviveu na roda de patrícios e amigos de Copérnico, com quem possivelmente teve trato também, reputado em Itália um dos melhores poetas latinos do tempo, julgado por Erasmo in epigrammatibus felicem, in oratione soluta promptum ac facilem, ad argumentandum dexterrimae dicacitatis, e cuja morte, não se sabe bem se devida a demasias no culto de Baco se à enfartada aplicação terapêutica de Esculápio, o mesmo Príncipe das humanidades e da independência mental, homo pro se como raros, espirituosamente atribuiu a uma angina vinaria, foram por igual discípulos do humanista de Florença.

Na sua escola todos depuraram o gosto, decantaram o entusiasmo pelas belas formas do dizer e, porventura, mediante as poesias do mestre, é possível que nalguns se tivesse despertado o sentimento da natureza e a compreensão da beleza potencial dos mitos; nenhum, porém, com tanta fama na Península como Aires Barbosa, condiscípulo de João de Médicis, mais tarde Leão X, e a cujo magistério em Salamanca a Espanha ficou devendo a introdução do helenismo. Apreciando os seus comentários a Arator (Salamanca, 1516), escreveu com autoridade indisputada, Cenáculo: “Diz a substância das matérias; forma um tecido de Escritura, Padres e História com pincel artístico. Semeia, como hoje praticam os sábios, as lições gregas no seu original; usa de frase latina elegante; mistura erudição grata e dá conselhos cuja imitação faria honra a quem a desempenhasse”.

Mas além destes nomes, quantos a recordar! Gonçalo de Azevedo, Fr. Gomes de Lisboa, Simão Afonso de Portugal, Jerónimo Osório, o Cícero português, Amato Lusitano, Roque de Almeida, Damião de Góis, que em Pádua, com Buonamici, depurou talvez o latim com que propagaria alguns feitos da Nação, e Gaspar Barreiros, o geógrafo e memorialista da Chorographia de alguns Lugares que stam em hum caminho que fez... o ano de 1546, começando na cidade de Badajoz em Castella, até à de Milam em Itália... (Coimbra, 1561), logo ocorrem dentre a legião dos que na terra acolhedora de Itália requintaram os dotes naturais na lição insinuante da convivência e das humanidades.

Neste desfile vertiginoso de nomes podem, porventura, esquecer-se as orações de obedientia, designadamente as de Vasco Fernandes de Lucena (1485), de D. Fernando de Almeida (1493) e de Diogo Pacheco, na embaixada de D. Diogo de Sousa ao papa Júlio II (1505)?

Em todas pulsava a fidelidade à Cadeira de S. Pedro, mas cada uma acentuava um rasgo religioso da história pátria —: a primeira, invocara o “milagre” de Ourique; a segunda, dava a conhecer a Alexandre VI as empresas marítimas e descobridoras de D. João II e a terceira, exaltava já a vitória da cristianização nos territórios recém--descobertos: Accipe, Beatissime Pater in primis Emanuelem tuum: Accipe Lusitaniam tuam negue Lusitaniam dumtaxat sed Aphricae quoque magnam partem: Accipe Aethiopiam atque immensam Indiae uastitatem: Accipe Oceanum ipsum licet indignantem nostro tamen remigio lacessitum confractumque: Accipe tot illos sinus tot promontoria tot littora, tot portus, tot insulas, tot oppida, tot urbes, tot regnos, tot numerosissimas nationes uno ueluti pugillo inclusas ne rumoribus quidam nobis antea cognitas: Accipe orientalem obedientiam tuis maioribus incognitam tibi reseruatam amplissimam quidem iam nunc sed indies deo auspice ampliorum adfuturam”.


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Vamos corrigir esse problema