Introdução à metafísica de Aristóteles

A concepção continha intrinsecamente algumas dificuldades, e a primeira que Aristóteles acentua no capítulo sexto que nos ocupa consiste em pôr a claro que a explicação da natureza das coisas sensíveis mediante as Ideias não é uma explicação aceitável.

Para Platão, as coisas sensíveis existem por participação das Ideias, e a juízo de Aristóteles esta explicação somente difere verbalmente da explicação pitagórica da existência dos seres à imitação dos números.

O que sejam participação e imitação não o dizem Platão e os Pitagóricos, mas a circunstância da explicação platónica somente diferir verbalmente da explicação pitagórica não quer dizer que Platão coincidisse com os Pitagóricos no que respeita aos objectos matemáticos.

Segundo os Pitagóricos, quando dizem que os seres sensíveis existem à imitação dos números cumpre entender por tal que os números são imanentes aos seres, isto é, não estão fora dos objectos sensíveis —, o  que aliás Aristóteles tem por mais consentâneo com a razão, pois o princípio das coisas deve ser-lhes imanente e não transcendente. Platão não pensa assim. Segundo os obscuros períodos do capítulo sexto do Alfa maiúsculo, o filósofo da Academia admitiu a existência de entidades matemáticas intermediárias entre as Ideias e os seres sensíveis. Como as Ideias, estas entidades seriam eternas e imutáveis, pelo que diferiam dos seres sensíveis, que são perecíveis e mutáveis, mas distinguir-se-iam das Ideias, em virtude de cada Ideia ser única e possuir singularidade própria e os objectos matemáticos somente possuírem unidade específica, o que equivale a dizer que comportam a multiplicidade, ou por outras palavras, a existência concreta de objectos semelhantes.

Assim, os objectos ou entidades matemáticas seriam intermédios, isto é, seres Com onticidade própria entre os seres inteligíveis, que são as Ideias, e os seres sensíveis, que são os objectos físicos.

Esta concepção encerra árduas dificuldades, bastando deixar acentuado agora, pois no seguimento das nossas introduções aos livros da Metafísica teremos de voltar à teoria platónica dos números por mais de uma vez e sob pontos de vista diferentes, que ela importa a distinção entre os números intermédios, ou matemáticos, e os números ideais, ou mais propriamente os números corno Ideias.

Como é crível, Platão foi levado a esta distinção para tornar compatível a propriedade aditiva dos números, pela qual eles se tornam quantitativamente diversos, com a unicidade de cada um deles, a qual é expressa pela essência ideal respectiva. A distinção equacionava-se com a teoria das Ideias, porquanto tornava possível logicamente o antes e depois inerentes à geração dos seres, quer esta se considerasse física e temporalmente (números intermediários ou matemáticos), quer se considerasse inteligivelmente, o que implicava a existência dos números ideais.

Sendo assim, e só hipoteticamente podem arriscar-se opiniões, que aliás abundam , os números intermédios não têm propriamente a unicidade das Ideias e portanto dos números ideais, mas são, corno interpretou Bonitz, espécies, que Platão comparou a números ou reduziu a números. Com os números intermédios é possível explicar o facto da soma, isto é, a formação de um número com outros números, o que era impossível com os números ideais, pois de essências únicas e irredutíveis não é possível obter por soma uma essência nova e diversa; consequentemente, os números intermédios são adicionáveis, por serem quantitativamente diversos, e os números ideais são inadicionáveis, por serem inteligivelmente e essencialmente diferentes.

À dificuldade de saber o que são intrinsecamente os números intermédios acresce outra, não menos densa de dúvidas, ou seja a geração dos números intermediários com a geração dos seres.

Após a referência à concepção dos números intermédios, Aristóteles atribui a Platão (hic., pp. 37-38) a doutrina segundo a qual a geração dos números matemáticos ou intermédios e das coisas sensíveis resultaria de uma causa formal, ou seja o Uno, e de uma causa material, ou seja a díada do grande e do pequeno.

É outra concepção de não menor dificuldade interpretativa, e cuja explicação parece ser a seguinte: Se as Ideias são a essência ou causa formal dos números enquanto contáveis e dos seres enquanto existentes na sua transitoriedade, e se de cada essência somente existe uma única Ideia, a multiplicidade de objectos semelhantes, isto é, tendo a mesma essência inteligível, pressupõe além da Ideia, ou causa formal, uma causa material, que Platão designa com o nome de díada do grande e do pequeno. Consequentemente, a sucessão dos números e a geração dos seres resultariam da participação do grande e do pequeno, isto é, da matéria, à Ideia, ou essência formal.

Aristóteles criticou esta obscura teoria, cuja estrutura parece compaginar-se principalmente à teoria do diálogo platónico Filebo, segundo a qual a natureza do apeiron se exprime pelo conceito de díada infinita. A seu juízo, a explicação da existência da multiplicidade de seres semelhantes com a mesma essência inteligível, ou Ideia, é exacta, porquanto a multiplicidade dos seres semelhantes não procede da causa material, que é causa de limitação ou de individuação, mas da causa formal, que, multiplicando-se, produz novos seres semelhantes. Assim, é a madeira que estabelece a limitação da existência concreta de uma mesa, porque o marceneiro que a fez, aplicando a Ideia de mesa, pode produzir outras mesas se não tiver a limitação que resulta da falta de madeira apropriada; e o mesmo quanto à fecundação, porque a fêmea é fecundada por urna só cópula, enquanto o macho pode fecundar várias fêmeas.

Desta exposição breve, e no fundo conjecturai, resulta uma conclusão, que era o objetivo de Aristóteles: Platão admitiu a existência de duas causas, ou sejam a causa formal e a causa material. Cumpre agora atentar no valor explicativo das concepções que acabámos de resumir.

c) Revisão crítica das concepções mencionadas

Como acima dissemos, a feição histórica que o livro Alfa maiúsculo (I) apresenta obedeceu ao intento, que Aristóteles expressamente declara (c. 7, hic., p. 39), de mostrar que, de Tales de Mileto a Platão, os sistemas filosóficos, separadamente considerados, sempre tiveram em mente, com mais ou menos clareza, uma ou alguma das causas que explicam o ser, a saber, a causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final, e considerados em conjunto, estabelecem que são estas quatro causas, e não outras, em número e em espécie, as causas que cumpre admitir.

A concepção aristotélica da explicabilidade causal tinha, pois, fundamento histórico, a ponto de poder afirmar-se que ela era o remate de uma caminhada de séculos dirigida no sentido da edificação de urna teoria do “princípio e da causa”. Herdeiro e continuador da tradição filosófica que o antecedera, Aristóteles sentiu como que a obrigação de declarar o que devia aos seus predecessores e mostrar as razões por que deles se afastava.


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Vamos corrigir esse problema