Introdução à metafísica de Aristóteles

Com ser errónea, a teoria das Ideias não é despicienda. Nada disso; não o é em si, nem na apreciação de Aristóteles. Criticando o idealismo platónico, nem por isso se soltou da pena de Aristóteles uma palavra que de longe ou de perto sugira desrespeito pelo génio de Platão, e ainda menos que tivesse considerado tempo perdido os anos em que com ele conviveu e com a roda ide amigos e de discípulos fiéis ao ensino da Academia.

A séculos de distância, a atitude moral e intelectual do Filósofo cujas conceções metafísicas influíram, como nenhumas outras, na História do Pensamento, é uma lição viva e atual de dignidade intelectual e de formação filosófica.

De dignidade intelectual, pela veneração à memória de quem soube ser Mestre e, como ninguém, descobridor e inquiridor de problemas; e de formação filosófica, porque, quaisquer que sejam os equívocos inerentes à substanciação dos conceitos como essências inteligíveis, a teoria platónica das Ideias significa hoje e significará sempre o que significava no tempo de Aristóteles, ou seja, o primeiro esforço da razão no sentido de arrancar a Ciência à empiria do mundo das sensações para lhe edificar a teoria sobre o estável e necessário de fundamentos não-empíricos.

INTRODUÇÃO À LEITURA DO LIVRO

ALFA MINÚSCULO (II)

A designação deste livro na computação grega dos livros metafísicos sugere desde logo a ideia de que os antigos o consideraram uma espécie de post scriptum ao livro Alfa maiúsculo. Dir-se-ia e a hipótese já foi formulada que os primeiros editores se encontraram perante umas páginas cujo assunto não era fácil de situar no conjunto dos livros metafísicos, e que as colocaram como prefácio ao Alfa maiúsculo por mera oportunidade, já depois de completada a primeira computação dos livros metafísicos.

Não existe, com efeito, continuidade entre os dois livros Alfa, nem entre o Alfa minúsculo e o livro Beta (III) e, por outro lado, a continuação lógica do Alfa maiúsculo é dada pelo livro Beta (III), cuja discriminação de problemas não pode compreender-se cabalmente sem o excurso histórico-filosófico do Alfa maiúsculo.

Justificam-se, por isso, as dúvidas acerca da autenticidade do Alfa minúsculo, pois além da descontinuidade que apresenta em relação ao Alfa maiúsculo corria na Antiguidade a tradição, transmitida por João Filo-pão (séc. VI-VII) e por nota de alguns manuscritos, de que as breves páginas que o constituem pertenciam a Pasicles de Rodes, sobrinho de Eudemo. Daí, as opiniões de Hamelin, que viu neste livro «um prefácio evidentemente apócrifo, e, além disto, deslocado, a uma Física”, e de Werner Jaeger, que não hesitou em escrever que “é um resto de notas tomadas numa lição por Pasicles, sobrinho de Eudemo de Rodes, o discípulo de Aristóteles”.

Seja ou não do punho de Pasicles, tivesse-o composto com apontamentos pessoais ou com extratos “tirados de um caderno do seu mestre”, como alvitrou Ravaisson, o teor deste livro é unanimemente tido por aristotélico, pelo que todos os editores de Aristóteles lhe dão entrada nos livros metafísicos, a exemplo de Alexandre de Afrodísia que o não excluiu dos seus comentários.

É que, seja o Alfa maiúsculo uma introdução geral à Física ou à Filosofia teorética, como também o considera Alexandre de Afrodísia com alguma hesitação, as ideias que nele se encontram têm cunho aristotélico e sucedem-se com sequência coerente. Esquematicamente, nele se ponderam sucessivamente as dificuldades da Filosofia como «ciência da verdade», e a possibilidade da Filosofia teorética, acerca da qual considera especialmente o problema dos primeiros princípios e o do método expositivo.

O capítulo I acentua as dificuldades da Filosofia como «ciência da verdade», discrimina duas espécies de Ciência e justifica o reconhecimento devido a quem nos antecedeu desbravando o terreno que cultivamos.

A noção de Filosofia como «ciência da verdade”significa, como acima dissemos (p. 388), que o saber filosófico é essencialmente teórico, e não prático, isto é, orienta-se no sentido do conhecimento das causas, o qual proporciona o saber supremamente verdadeiro. A verdade somente é atingida com plenitude quando se conhecem as causas e o princípio. Por isso, se nos seres mutáveis é por excelência verdadeiro o que é causa da sua verdade, corno por exemplo o fogo, que é a causa do calor que os corpos experimentam, por maioria de razão os seres que são eternos exprimem uma verdade que é eterna, visto que o ser e a verdade se correspondem mutuamente. Consequentemente, dada a equivalência dos princípios lógicos e dos princípios ontológicos, a Filosofia como «ciência da verdade”significa o conhecimento supremamente verdadeiro, ou seja o conhecimento das causas e princípio.

Por natural processo dicotómico, o estabelecimento deste objeto determinou a divisão da Ciência em especulativa e prática, mas esta divisão do Alfa minúsculo, embora se relacione com a da Ética a Nicómaco (cap. I), não exprime o pensamento completo de Aristóteles a este respeito, o qual, como veremos nos livros VI (E, I) e XI (K, 7) assenta na divisão tripartida das Ciências em teoréticas, práticas e poéticas.

Se a divisão bipartida da Filosofia é de algum modo secundária, não o é a reflexão acerca da dificuldade da «especulação sobre a verdade», quanto mais não seja por implicar o reconhecimento da existência da herança espiritual que o presente deve ao passado, sem a qual o presente não seria o que é.

A investigação da verdade é, sob certo ponto de vista, difícil e fácil: difícil, por ser impossível que alguém a leve sozinho a cabo com êxito completo; e fácil, porque os esforços continuados de muitos indivíduos concorrem para que ela se alcance. Propriamente, a razão da dificuldade não procede da natureza da verdade, mas da natureza do entendimento humano, que está para as coisas supremamente verdadeiras como o morcego para a luz do dia.

Por isso, a gratidão é devida a quem se tenha esforçado por investigar a verdade, não só em relação aos que investigaram com êxito, senão também em relação aos que a conduziram superficialmente, porque uns e outros prepararam o caminho sem o qual os que vieram mais tarde não atingiriam a verdade. Se aqueles são dignos de reconhecimento pelos resultados positivos que legaram, estes não são menos dignos de apreço por haverem adestrado a capacidade especulativa, pois «sem Frínico, Timóteo não teria existido».        

O capítulo II é destinado a provar que a série de causas não é infinita, o que importa dizer que o objeto da «especulação da verdade”implica a existência de «um princípio».

É nestes termos limitados que o assunto é exposto, representando, portanto, somente um aspeto  do complexo e diversificado debate de Aristóteles contra a conceção infinitista do Universo, polarmente antagónica da sua teoria física, essencialmente ligada à conceção do primeiro motor imóvel.

De manifesta intenção crítica, a exposição entra logo no assunto sem advertir o leitor do sentido de alguns conceitos necessários à boa compreensão. Um deles é o de infinito, cujo significado válido para este lugar cremos ser o que se colhe da discussão do livro II da Física, a saber, o que sempre pode ser continuado, ou ainda, o que sem fim está fora ou além do que se considera.


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