Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

Em 9 de Fevereiro de 1537 a trasladação foi por assim dizer tornada pública; e ao anunciá-la a Frei Brás de Barros, D. João III ordenava-lhe que dispusesse os gerais de Santa Cruz e as casas mais próximas do mosteiro por forma que os lentes de Teologia, Cânones, Leis e Medicina começassem os cursos no primeiro de Março de 1537.

As Artes, que já se ensinavam em Coimbra, como vimos, não careciam de providência especial. A transferência impunha, com efeito, dois graves problemas: o da instalação da Universidade e o da situação do pessoal docente de Lisboa. Quanto ao primeiro, logo se reconheceu que não era viável o intento régio, ou de Frei Brás de Barros, de instalar as classes nos colégios e dependências do mosteiro; por isso se repartiram as Faculdade, alojando umas nos colégios de Santa Cruz e outras nas casas de D. Garcia de Almeida, que por provisão de 1 de Março de 1537 havia sido nomeado reitor da Universidade de Coimbra. Segundo parece, só em Abril ficou instalada a Universidade, abrindo-se as aulas em 2 de Maio de 1537. Este alojamento fora um expediente provisório imposto pelas dificuldades de momento; por isso em Setembro deste ano, D. João III anunciou o propósito de mandar edificar Escolas Gerais adequadas, o que não realizou, e entretanto ordenou que a Universidade se alojasse no paço real da Alcáçova por forma que neste novo local funcionassem as aulas em Outubro. Nestas vicissitudes houve sem dúvida a dificuldade material do alojamento, mas descobre-se também a luta entre a Universidade e o Mosteiro. Pondo de parte os incidentes, por secundários ao nosso ponto de vista, em princípios de 1538 liam-se nos paços reais o Direito civil, o Direito canónico, a Matemática, a Retórica e a Música; e nos colégios de Santa Cruz, a Teologia, as Línguas grega e latina, a Filosofia e a Medicina, pela conexão dos estudos médicos com as Artes. O desmembramento de um organismo essencialmente corporativo afetava naturalmente a vida escolar; mas mais grave que a diversidade de locais era a quebra da unidade de direção, porque o governo da Universidade se repartia por duas autoridades diversas e independentes: o reitor, nos paços reais, e o prior-mor, no mosteiro.

Daí o desejo da Universidade se reunir num local único e concentrar os poderes de direção no seu reitor. Só em 1544 o conseguiu, sem dúvida pelos esforços do reitor Frei Diogo de Murça, e pela condescendência de Frei Brás de Barros, que talvez tivesse reconhecido os estragos e inconvenientes do bulício escolar no seio de uma comunidade votada ao recolhimento.

Desde este ano todas as Faculdades se alojaram nos paços reais, que ficaram sendo os Paços das Escolas, onde ainda hoje existe a sede principal da Universidade, e se estendeu sobre o corpo escolar a autoridade do reitor e dos conselhos académicos.

Do pouco que sabemos das anteriores trasladações da Universidade somos levados a crer que houve tão-somente variação de local. Os professores, que apenas mudavam de residência, viam respeitados os seus direitos, persistindo o estudo com a mesma orgânica. D. João III, porém, ao transferir a Universidade, não se prendeu com os direitos adquiridos pelos professores da capital. Para Coimbra enviou quem lhe pareceu competente, aposentando quem o não era ou lhe não agradava; e esta medida, sempre fácil para uma vontade que se considera soberanamente absoluta, parecia coonestar-se como consequência necessária da extinção da Universidade em Lisboa. Sob o ponto de vista docente, a transferência trouxe consigo a seleção de pessoal, e com tal amplitude que pode pensar-se ter sido a necessidade da reorganização docente que inculcou o processo da transferência. Em vez de efeito, causa; mas seja ou não exata esta relação, é indiscutível que o êxito da mudança para Coimbra resultou da escolha do professorado a quem D. João III confiou o magistério. De Lisboa vieram os mais famosos professores das faculdades maiores, completando-se o quadro docente com professores nacionais e estrangeiros, sobretudo de Salamanca e Paris, célebres alguns na república das letras. D. João III, verdadeiro Mecenas, não regateava as liberalidades; e, dirigida por espíritos esclarecidos, sobretudo o reitor Frei Diogo de Murça, a Universidade de Coimbra, aberta a todos, sem exclusivismo de nacionalidade, viveu então os dias mais gloriosos da sua história científica.

Em Teologia ensinaram, de entre outros, o Dr. Afonso do Prado, Francisco de Monçon, graduado em Alcalá, autor do Espejo dei Principe Christiano, Martinho de Ledesma, António de Afonseca, doutor teólogo por Paris, Marcos Romeiro e Paio Rodrigues de Vilarinho. Na Faculdade de Cânones, Martin de Azpilcueta Navarro, catedrático da Universidade de Salamanca, Bartolomeu Filipe, Luís de Alarcão, João Peruchi Morgovejo. Em Leis, Manuel da Costa, o doutor subtil, que viera de Salamanca para reger a cátedra de Código, Fábio Arcas, que veio de Roma, Aires Pinhel, estudante famoso em Salamanca, e tantos outros, pois parece terem ensinado então em Coimbra dezoito lentes de Leis. Em Medicina, Henrique de Cuellar, Afonso Rodrigues de Guevara, Luís Nunes, Rodrigo Reinoso, Francisco Franco, valenciano; e em Matemática, Pedro Nunes, que era mestre no Estudo de Lisboa.

Foi a tão famosa galeria de mestres que a Universidade, deveu a celebridade nos primeiros anos da sua trasladação, provando-se uma vez mais esta verdade do senso comum de ser o professor e não a organização quem valoriza a escola, tanto mais que a trasladação não foi precedida nem seguida, em nosso juízo, de uma reforma dos estatutos. Alguns historiadores têm defendido a opinião de que em 1544 foram promulgados estatutos novos. Teófilo Braga, em especial, foi o grande defensor desta opinião, exposta largamente no volume II da História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrução pública portuguesa; mas nenhum dos argumentos que aduziu se nos afigura probatório, porque todos se referem ou aos estatutos manuelinos ou aos estatutos do Colégio das Artes. Pensou-se, sem dúvida, na ordenação de um novo regimento, porém não chegou a ter expressão legal durante a vida de D. João III, que limitou a sua ação reformadora a medidas avulsas, as quais só parcialmente modificaram os estatutos de D. Manuel. Entre estas providências inovadoras destacam-se as que se referem ao aumento das cátedras nas várias Faculdades, aos usos e costumes universitários e às atribuições dos priores gerais de Santa Cruz, as quais merecem um momento de atenção pelas vicissitudes da feição regalista da Universidade. Desde a fundação do Estudo Geral, por D. Dinis, e de harmonia com a bula de Nicolau IV, os graus académicos eram conferidos nas sés onde se encontrava o Estudo, pelos prelados de Lisboa ou Coimbra, e por autoridade pontifícia. Os atos grandes, como vimos, realizavam-se na sé ou nas casas do cabido, por forma que as funções de cancelário eram exercidas pelo prelado da sede da Universidade. Ao trasladar a Universidade para Coimbra determinou D. João III por alvará de 28 de Novembro de 1537, que o reitor servisse de cancelário e conferisse os graus de licenciado e doutor em Leis e Medicina, por autoridade régia. Quanto aos de Teologia e Cânones deviam suspender-se até que de Roma viesse autorização para se conferirem por autoridade pontifícia, o que Paulo III concedeu, por bula da Penitenciaria de 12 de Fevereiro de 1539.

A concessão de graus por autoridade régia, embora restrita às Faculdades de Leis e Medicina, abria naturalmente o caminho da secularização da Universidade; porém era um caminho curto e difícil, tendo diante de si a barreira intransponível da ideologia orientadora do Estado, segundo a qual o poder público tinha por missão a realização dos fins ético-religiosos. Compreende-se, assim, quanto era precário o regime estabelecido para a nova Universidade, tanto mais que ele repartia as funções de cancelário por duas autoridades diversas, que naturalmente competiriam para obter a unificação dessas funções. Como era lógico, triunfou a autoridade eclesiástica. Pelas cartas régias de 15 de Dezembro de 1539 e de 29 de Dezembro de 1540 o prior geral de Santa Cruz conquistou para si e para os seus sucessores o título de cancelário da Universidade, cumprindo-lhe dar os graus de licenciado e doutor em Leis, Medicina e Artes por autoridade régia, e em Teologia e Cânones por autoridade pontifícia. Os exames privados e a colação dos graus faziam-se então no Mosteiro de Santa Cruz; mas em 1544, quando todas as Faculdades se alojaram no Paço real da Alcáçova, os atos e cerimónias universitárias passaram a realizar-se no edifício da Universidade, conservando, porém, os priores gerais de Santa Cruz a dignidade e funções de cancelários, que mantiveram até à extinção das ordens religiosas em 1834.          


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