Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

Com a Universidade e o Colégio das Artes, Coimbra converteu-se na cidade escolar portuguesa. Detendo o monopólio do ensino superior e quase o do ensino secundário, todos os candidatos e amantes do saber careciam de se alojar dentro dos seus muros. Daí, a fundação de numerosos colégios, criados uns por D. João III, outros por particulares, e a maioria pelas ordens monásticas. Entre os colégios fundados no reinado de D. João III, além dos quatro de Santa Cruz e do Colégio das Artes, merecem recordar-se os de São Pedro, de São Paulo, do Espírito Santo, da Trindade, dos Carmelitas Calçados, da Graça, de São Boaventura, de São Jerónimo e de São Bento. Casas de residência para os que se dedicavam ao estudo ou alcançavam graus académicos, foram também escolas de preparação científica, no sentido largo da palavra, e por eles Coimbra adquiriu uma fisionomia singular, que conservou até à extinção das ordens religiosas em 1834.

Com a instauração da dinastia de Avis, sancionada pelas cortes como expressão da independência pátria, a vida da nação renovou-se profundamente. Sob o aspeto intelectual, a Escola e as Livrarias são hoje para nós os marcos representativos desta renovação. Acabamos de delinear o quadro do ensino público; e se nos voltarmos para as livrarias encontraremos na sua nova feição o câmbio de ideias e o alargamento do horizonte intelectual. Foi no reinado de D. João I que se organizou a primeira livraria da coroa, não meramente pessoal, que D. Duarte, D. Afonso V e D. Manuel conservaram e aumentaram. O exemplo do rei de boa memória foi uma sugestão viva para os filhos; e na sua corte, onde as inquietações morais se volveram reflexivas e sabiamente conscientes, «a ínclita geração, altos infantes», no verso camoniano e no sentir da grei, se consumiu na ânsia de saber, convertendo as suas moradias em mansões de estudo, com livrarias, que hoje só pela imaginação podemos povoar, salvo a do Infante Santo, D. Fernando, que nos legou no seu testamento a descrição dos quarenta e quatro códices que possuiu. Pelo rol dos livros de D. Duarte pode recompor-se em parte a livraria de D. João I. Teófilo Braga, no primeiro volume da História da Universidade de Coimbra estudou com sagacidade este assunto, interessando apenas ao nosso ponto de vista uma rápida visão do panorama que abrangia. Nele se divisam obras jurídicas, como as Conclusões de Bártolo, o Código com o comentário de Cino de Pistóia, e as Partidas de Afonso-o-Sábio; políticas, como o Regimento dos Príncipes, de São Tomás de Aquino, ou de Egídio Romano; religiosas, como os Evangelhos; literárias, como o Livro das Trovas de D. Dinis, a Demanda do Graal, e a Confissão do Amante, do inglês John Gower; históricas, como a História Geral de Espanha; e livros de cetraria e venatória. Se se atribuir o Livro da Montaria a D. João I, e não há razões para que se lhe não atribua pelo menos a colaboração neste tratado, recentemente impresso por um dos mais notáveis eruditos da nossa época, o académico Esteves Pereira, o rol indicado por seu filho e sucessor é pequeno.

Se inventariarmos as citações deste livro, teremos de incluir na livraria real escritos de padres da Igreja (Santo Agostinho, Beda) e doutores, como São Bernardo; livros de gramática, retórica e filosofia, isto é, de Aristóteles, cujo tratado Da Alma parece conhecer; e de astronomia, como Ptolomeu, os árabes Albenazar e Ali ben Ragel, traduzido em parte, em 1410-1412, e existente na biblioteca Bodleiana de Oxford, assim como o Livro de Mágica que compoz Juan Gil de Burgos, o qual é, sem dúvida, o «grande livro de astronomia» citado no Livro da Montaria.

Todas as ciências se encontram, assim, representadas na livraria real, sendo de notar particularmente a astronomia, confundida ainda com a astrologia. É que a livraria não servia apenas de regalo ou satisfação de curiosidades intelectuais: era como que a condição teórica da grande empresa de expansão ultramarina, da formação e estudo dos descobrimentos, cuja calma segurança se não compadecia com o cego espírito de aventura. Foi esta função que conferiu à livraria palatina um valor singular, convertendo-a na vida profunda da nação. Os sucessores de D. João I recolheram e dilataram esta herança, especialmente D. Afonso V e D. Manuel.

D. Afonso V, por assim dizer, abriu-a ao público, adquirindo códices, curando da sua instalação, estipendiando escrivães e iluminadores, e confiando a sua guarda e conservação ao historiador Gomes Eanes de Zurara (desde 1451, pelo menos), que nela terminou a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné e colheu a vasta erudição histórica e moralizante que peja e caracteriza os seus escritos. Tudo o que no século XV teve renome europeu, na literatura, clássica ou contemporânea, na história e na ciência, encontrou um eco de simpatia em Portugal.

Pelo inventário da livraria de D. Manuel, descoberto e publicado por Sousa Viterbo em 1901 numa memória da Academia das Ciências de Lisboa, se verifica quanto havia aumentado a livraria real; e tanto este fundo, como as citações dos escritores do final do século XV e dos princípios do século XVI, documentam exuberantemente o interesse pelas novidades e pelas ideias, a tal ponto que não careciam de abonar-se com exemplos estranhos os portugueses que no século XVI, como Frei Diogo de Murça, formaram grandes bibliotecas. Em 19 de Janeiro de 1483, foi concedido o privilégio da isenção de impostos para os livros que os franceses Guilherme de Montrete, Francisco de Montrete e Guido importassem e vendessem em Lisboa, porque «ao bem comum» convinha «em nossos regnos aver muitos livros». Assim se consagrava oficialmente a maravilhosa invenção da imprensa, que difundindo o livro condicionou uma nova fase da história da Humanidade.


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