Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

A Universidade, pela sua tradição, pelo seu regimento e pela influência da organização universitária de além-fronteiras, que na essência foi um produto da sensibilidade e das conceções científicas da Idade-Média, era um organismo autónomo, no qual o poder real se não fazia sentir tão dominadoramente como noutros departamentos do serviço público. A imperativa necessidade de vitalizar o Estado e as aspirações da Nação, a qual foi a missão e a obra suprema da dinastia de Avis, não tolerava, porém, que o rei fosse mero espectador ou restringisse a sua ação a ponderar as propostas que a Universidade lhe apresentava. Até onde foi a iniciativa régia na reorganização universitária?

Em face da escassa documentação publicada não é fácil a resposta. Sabemos que João das Regras, o famoso chanceler e jurisconsulto formado em Bolonha, teve a direção (encarrego) do Estudo por nomeação régia, pois das cartas régias de 26 de Janeiro de 1415 e 23 de Agosto de 1418 se colhe a notícia do Dr. Gil Martins ter exercido durante o triénio este cargo, no qual sucedera a João das Regras. Da sua ação nada se sabe, assim como do tempo que o exerceu; porém é verosímil supor que teria concorrido decisivamente para o desenvolvimento dos estudos jurídicos, pois de uma carta régia de 25 de Outubro de 1400, pela qual se aliviava o pessoal docente, discente e administrativo da Universidade das peitas, fintas, talhas e pedidos para o Estado, se colige que ensinavam então três lentes de Leis, três de Cânones, dois de Lógica, um de Medicina, um de Teologia e um de Gramática. Poucos anos depois, e antes de 1415-1418, o ensino da Gramática passou a ser feito por quatro mestres. A tabua legentium aumentara, pois, nos primeiros anos do reinado de D. João I, especialmente no ensino do Direito Civil e do Direito Canónico, sendo de notar o aparecimento do ensino universitário da Teologia, que até ao findar do século havia sido ministrado apenas nos conventos de dominicanos e franciscanos. O ensino universitário da Teologia fora uma conquista importante, e bastaria este facto para nos advertir que o Estudo de Lisboa entrara na via da atualização. É possível que o impulso tivesse partido de João das Regras, antigo aluno de Bolonha, cujo ardente patriotismo o tornaria desejoso de elevar o ensino jurídico e teológico da escola cuja direção o seu rei lhe confiara. É uma hipótese, com a qual entramos no domínio do possível; mas o que não oferece dúvida é que pertence ao infante D. Henrique a glória de prosseguir e dilatar a reorganização da Universidade, e por ela a cultura pátria. A empresa a que se havia devotado reclamava a colaboração da inteligência orientada para a modernidade e para o saber da natureza, e ao voltar-se para a Universidade teria reconhecido que ela lhe não podia dar o que ele desejava, pelo regimento antiquado dos seus estudos.

Impunha-se a reorganização num sentido científico; e fosse esta razão, fosse a conceção ética dos deveres de senhorio, que seu irmão o infante D. Pedro longamente explanou no Tratado da Virtuosa Benfeitoria, afirmando ser «cousa necesarya de sse tirar ynorancia per studos continuados, os quaaes deve soportar qualquer senhorio que os pode manteer ordenando Universidade solemne en que os Sabedores consyrem todalas cousas per suas artes», o certo é que o infante D. Henrique foi o organizador do ensino universitário quatrocentista.

A Universidade reconheceu-o como tal, elegendo-o, ao que parece, seu protetor. Não se sabe com segurança a data em que foi eleito. O Dr. José Maria Rodrigues, num estudo acurado sobre O infante D. Henrique e a Universidade, seguindo a tradição, diz ter sido «o primeiro [...] que aparece com o título de protetor da Universidade. Teve, porém, dois precursores, por intermédio dos quais D. João I começara já, ao que parece, a intervir diretamente no governo da Universidade. Foram eles os doutores João das Regras e Gil Martins, que ambos tiveram, sucessivamente, o encarrego da Universidade, ambos exerceram sobre ela jurisdição por um título até então desconhecido. Nos seus diplomas relativos à Universidade, pelo menos nos que conhecemos, não usou o infante D. Henrique de nenhum título destinado a indicar a ingerência que nela tinha; mas no alvará de Pero Lobato, datado de 29 de Abril de 1441, chama-se-lhe governador da Universidade, e D. Afonso V, na provisão de 27 de Fevereiro de 1479, dá-lhe o título de protetor. Tratando-se de uma nova entidade, estranha à primitiva organização do Estudo Geral, não admira que houvesse a princípio algumas hesitações quanto ao termo por que ela se havia de designar. Chegaram até a ser empregadas no mesmo diploma as duas expressões de governador e protetor da Universidade (1476). Por fim prevaleceu a segunda, muito usada naquela época pelos dois poderes eclesiástico e civil, para ampliarem as respetivas jurisdições. No Livro dos Privilégios só uma vez, em uma pública-forma de 25 de agosto de 1443, se dá ao infante D. Henrique o título de 'proteitor do studo (da cidade de lixboa)'. Quando principiou o infante D. Henrique a intervir no governo da Universidade? Figueiroa, que não teve conhecimento do alvará de Pero Lobato, escreve o seguinte: «Não acho mais que um documento por que conste que o infante D. Henrique exercitou a jurisdição de protetor e governador, que é uma carta sua feita em 23 de Agosto de 1443.

«Todavia, se é do infante D. Henrique o alvará de 29 de Outubro de 1418, foi decerto neste ano que ele começou a exercer a sua jurisdição na Universidade, sucedendo naturalmente ao Dr. Gil Martins, que ainda em 23 de Agosto do mesmo ano tinha encarrego de studo.

«A que título assumiu o infante D. Henrique o cargo de governador ou protetor da Universidade? Seria por nomeação régia, por eleição da Universidade, ou por eleição desta, precedida da insinuação do monarca? Os documentos que hoje nos restam são omissos a tal respeito. D. Jorge da Costa foi eleito (1479) pela Universidade, porque assim lho encomendou D. Afonso V. D. Rodrigo de Noronha foi nomeado por este mesmo rei (1476), sem nenhuma intervenção da Universidade. O infante D. Fernando, filho adotivo e herdeiro de D. Henrique, talvez exercesse a protetoria da Universidade por direito de sucessão. Assim se explicaria facilmente o facto de ele se dirigir à Universidade, por esta forma, em alvará de 24 de Julho de 1462: '1-reitores leentes e conselheiros do meu estudo e unjuersidade da çidade de lixboa'. Enquanto ao infante D. Henrique, diz Figueiroa que a Universidade o elegeu por seu protetor e governador, em reconhecimento dos grandes benefícios que dele tinha recebido. O Dr. José Maria de Abreu diz também que o infante fora eleito protetor, e supõe, por causa do alvará de 29 de Outubro de 1418, que a eleição teria lugar neste mesmo ano. Não conheço, porém, nenhum documento donde conste ter-se realizado este facto.»

Eleito ou nomeado, o infante cumpriu os deveres do seu cargo. Impunham-lhos, a um tempo, a formação moral, grave e voluntariosa, as exigências da sua missão na vida nacional e, não o devemos esquecer, o ambiente intelectual da corte e a sugestão do infante D. Pedro, o mais culto da ínclita geração.

Comentando as sentenças platónicas de que «se deve chamar bem-aventurado e glorioso o mundo quando regnam os sabedores», e «principe e sabedor todo seja uma cousa», o mal-aventurado infante exprime a opinião na Virtuosa Benfeitoria que se corrigiria o reino «mandando que cada huü bispado e religiom ordenassem certos collegios, e os studantes que em elles ouuessem, rrecebendo seus graaos fossem leentes por certos annos segundo se costuma em paris, e em uxonya (Oxford) onde aos meestres se nom paga preço polla ensinança que geeralmente outorgam, porque em suas lecturas som obrigados per iuramento: por esta guisa enfloreceria a Coroa rreall com muytos letrados» (Livro II, Cap. 22).


?>
Vamos corrigir esse problema