9. Anotações histórico-bibliográficas [ao libro de Algebra en Arithmetica y Geometria]

Jordão Nemorário chamou ângulo de contingência ao ângulo formado pela tangente a uma circunferência e a circunferência.

Cardano, e com ele os seus compatriotas, notadamente Galileu, designavam-no de ângulo de contato (angulas contactas), donde o poder inferir-se que foi na obra daquele misterioso Jordão que Pedro Nunes colheu a designação.

Discutia-se ao tempo a relação deste ângulo com os ângulos que se formam no ponto de tangência: o interno, que se chamava ângulo do semicírculo, formado pela semicircunferência e pelo diâmetro, e o externo, que se chamava ângulo reto retilíneo, formado pela tangente e o diâmetro.

Proclo Diadoco (412-85), no comentário à def. 8, III, de Euclides, como que hesitou em considerar o ângulo de contingência como verdadeiro ângulo, donde o ser interpretado no sentido deste ângulo ser nulo. O assunto, que parece ter sido discutido na Antiguidade, ressurgiu no século XIII com Campano, que se inclinou para a opinião de que o ângulo de dois círculos tangentes é divisível, e por consequência não é nulo, embora seja de natureza diversa do ângulo retilíneo.

Foi com base nesta opinião que, segundo cremos, Pedro Nunes formulou os dois problemas fundamentais: se o ângulo de contingência é nulo, e se tem proporção com os dois ângulos acima referidos.

Quanto ao primeiro, considerando que o ângulo de contingência era a diferença entre o ângulo reto retilíneo e o ângulo de semicírculo (p. 82, 11. 15-16), entendia que continha uma quantidade. Quanto ao segundo, partindo da noção de proporção que estabelecera, ou talvez mais exatamente da interpretação dada à def. 4, V, de Euclides, deduziu que o ângulo de contingência não tem proporção com o ângulo do semicírculo nem com o ângulo reto retilíneo, “porque por mais que se multiplique não os pode exceder”. Demais, esta era ainda a inferência compatível com a 8, V, de Euclides, e este foi também o parecer de Clávio que invocou e em parte traduziu este juízo de Pedro Nunes: “Recte antem animaduertitit Petrus Nonius in sua Algebra de Proportione agens, per hanc propos. 8 probari non posse, angulum rectum maiorem habere proportionem ad quemuis alium angulum, quam angulum semicirculi ad eundem illum angulum, quanquam rectus angulus maior sit angulo semicirculi: qui excessus anguli recti supra angulum semicirculi, qui est angulus contingentim, quantumuis multiplicatus superare nequit tertium illum angulum, quod tamen in huius propos. demonstratione requiritur (...)”. (Euclidis Elementorum libri XV... omnes perspicuis demonstrationibus, accuratis que scholiis illustrati 3.ª edição, Colónia, 1591, p. 267).

É possível que esta já fosse a opinião de Pedro Nunes à data da primeira redação do Libro de Algebra, ao tempo em que avultava na doutrina do ângulo de contingência o pouco que Jordão Nemorário e Campano acerca dele haviam escrito. Em 1557, porém, Jacques Peletier dera a público os In Euclidis Elementa Geometrica demonstrationum libri sex (Lyon, 1557) e neste comentário euclidiano sustentou o polígrafo francês que o ângulo de contingência era nulo, donde deduzia serem iguais o ângulo de semicírculo e o reto retilíneo (p. 83, 11. 12-15).

Esta opinião levou Pedro Nunes a repensar o assunto e a dar1he mais largo fundamento, donde o poder aventar-se com verosimilhança que as páginas deste capítulo tiveram segunda redação posterior ao ano de 1557.

Com efeito, Pedro Nunes contrastou a sua opinião com a de Peletier, cuja argumentação examinou e refutou; e, além disto, procurou acrescentar novos argumentos, que devemos discriminar dada a índole histórica, que não matemática, das nossas anotações.

O primeiro argumento visa pôr a claro a impropriedade da aplicação da def. 1, X, de Euclides para demonstrar que o ângulo de contingência é nulo.

O segundo procura mostrar que a def. 16, III, de Euclides implica que este ângulo não é nulo, apoiando-se nos respetivos comentários de Teão e de Campano.

O terceiro baseia-se no conceito de Arquimedes, no De Sphaera et Cylindro, de que o continente é maior que o conteúdo, e serve como que de aditamento ao anterior.

O quarto é baseado no conceito de gravitas secundum situm, de Jordão Nemorário. É, um argumento que merece atenção pelos problemas históricos que levanta.

1) A fonte literária do argumento.

Procede, como Pedro Nunes declara, do De ponderi bus, de Jordanus Nemorarius. Trata-se de um indivíduo ainda não identificado (Jordanus de Nemore, de Saxónia ou Teutonicus, de Namur, de Nemi, etc.) e de uma obra de grande importância na história da mecânica. Foi dada ao prelo pela primeira vez por Petrus Apianus, em 1533 (Liber de ponderi bus, Nuremberga) e posteriormente por Nicolau Tartaglia, em Veneza, em 1565, e deu-lhe renome a circunstância de ser frequentemente citada por numerosos contemporâneos de Pedro Nunes, como Maurolico, Ferrari, Cardano, Guidobaldo dei Monte, Benedetti, etc.62.

É de crer que Pedro Nunes tivesse possuído a edição de Pedro Apiano, não só pela atenção que dispensou a este autor como pelo interesse que dedicou às publicações saídas de Nuremberga, cuja escola matemática assinala uma das fontes mais ativas do seu pensamento científico.

A edição de Tartaglia talvez lhe não fosse desconhecida, mas temos por seguro que leu e refletiu sobre o Diálogo com D. Diego Hurtado de Mendoza, embaixador imperial em Veneza, que este matemático, muito do conhecimento de Pedro Nunes, incorporou (pp. 78-98) nos Quesiti et inventioni diverse (Veneza, 1554) e no qual reproduziu as proposições do De ponderibus sem dar o seu a seu dono.

2) Fundamento do argumento.

Dos cinco princípios que fundamentam a estática de Nemorário, Pedro Nunes considerou o quarto, cuja tradução fez (p. 84, 11. 17-19): “Quarta secundum situm gravius esse, quanto in eodem situ minus obliquus est descensus”.

O conceito de gravitas secundum situm, que está subjacente à argumentação de Pedro Nunes, é traduzível pela noção da componente do peso na direção da trajetória descrita pelo móvel, isto é, o corpo quanto mais se aproximar da vertical tanto maior será a gravitas secundum situm.

Para desenvolvimento desta noção veja-se a memória de J. Vailati sobre o princípio dos trabalhos virtuais, de Aristótéles até Herão da Alexandria, incorporada na tradução dos admiráveis escritos deste sábio: Contribución a la Historia de ia Mecánica (Buenos Aires, 1947, pp. 54 e segs.); e o capítulo XXII (“Giordano Nemorario e gli inizi delia nuova Statica”) da Storia della Tecnica Italiana. Alie origini della vita moderna (Florença, 1940, pp. 277-284), de Umberto Forti.

3) Crítica da opinião de Cardano (p. 85, 11. 10-14).

Pedro Nunes despacha nestas linhas, sacudida e depreciativamente, as seguintes afirmações de Gerolamo Cardano, no De Subtilitate, Livro I (De Principiis, Materia, Forma, Vacuo corporum repugnantia, Motu naturali, et Loco): “(...) Post hc uidendum est de ponderibus quw in libra constituuntur. Sit igitur libra cujus trutina sit appensa in A, et finis ubi junguntur latera lancis B, et lanx CD, et manifestum est quod CD, mouetur circa B, uelut centrum quoddam, guia CD. non potest separari ah ipso B: et sit angulus ABC, et ABD rectus. Dico quod pondus in C constitutum erit grauius, quam si lanx collocetur in quocunque alio loco, utpote quod constitueretur lanx in F. Ut autem cognoscamus quod C. sit gravius in eo situ, quam in F. necessarium est ut in wquali tempore moveatur per majus spacium versus centrum. Videmus enim graviora pari ratione in reliquis, velocis ad centrum ferri. Quod autem hoc contingat magis pondere & libra in C collocata quam in F, ostendo duabus rationibus. Prima, quod si in aliquo tempore moveatur ex C in E, & sit arcus CE mqualis FG, quod tardius descendet ex F in G, quam ex C in E, & ita erit levius in F, quam in C. Secundo, quod posito quod in wquali spacio temporis moveretur ex C. in E, & ex F in G, adhuc per arcum CE 2e qualem FG, magis appropinquaret centro quam per motum factum in arcu FG. Ideo ergo duplici ratione magis gravabit pondus lance posta ad perpendiculum cum trutina, quam in quocunque alio loco.               


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Vamos corrigir esse problema