9. Anotações histórico-bibliográficas [ao libro de Algebra en Arithmetica y Geometria]

Não há qualquer indício extrínseco de Pedro Nunes haver conhecido o livro de Marco Aurel. O silêncio pode ser filho do desprezo; porém a hipótese de que ele lhe suscitou a indignação concorre para explicar satisfatoriamente a trasladação do manuscrito português para castelhano, e permite apreender a emoção latente nalguns períodos da dedicatória e do posfácio.

Com efeito, sente-se o ímpeto de uma reação mal contida na reiterada reivindicação da prioridade do Libro de Álgebra no conjunto da bibliografia peninsular e em relação à Ars magna sive de regulis algebraicis, de Cardan, assim corno soa a recriminação contra o estulto desaforo de Marco Aurel a afirmação de que a Summa de Luca Pacioli fora o primeiro tratado de álgebra que se imprimira e se conhecera em Espanha, no qual todos aprenderam, e que o Libro de Álgebra, com ficar manuscrito em português durante mais de trinta anos, nem por isso deixou de ser conhecido e até aproveitado por alguns. Assim, compreende-se que Pedro Nunes se desse ao trabalho de trasladar para castelhano a sua obra, recorresse ao prelo de uma oficina longínqua para evitar possíveis indiscrições, vindicasse, como em nenhum outro escrito, a sua originalidade, confessando o que devia a predecessores, e até onde, e, finalmente, se dirigisse à opinião científica espanhola com o propósito de a esclarecer.

Embora desprovida do apoio de fatos externos e documentais, esta hipótese aparece-nos fundada psicologicamente, pela carta emotiva que impregna as razões de Pedro Nunes. Seja, porém, qual for a sua consistência, ela não implica que o Libro de Algebra tenha, como o De crepusculis, a feição própria das obras de pura teoria, em que o estabelecimento da problemática e o desenvolvimento demonstrativo se apresentam com a sigla da originalidade. A preocupação prática coexiste com o interesse especulativo e ao lado da criação original aparece a influência alheia, aliás confessadamente anunciada.

Pela intenção, é, de algum modo, um livro didático, de utilidade prática. “Vendo eu”, diz na dedicatória, “quãto seja util para ho uso dos homês esta arte que trata dos numeros & medidas, pretendi nesta minha obra que sem preceder doctrina de sciëcia especulativa, na qual se gasta mais tempo, a possam per si aprender & em pouco tempo, e facilmente, sem mais ajuda de mestre”.

A feição didática e prática não procedia exclusivamente da intenção pessoal, porque aparece à crítica como que ditada pela atitude metodológica que Pedro Nunes adoptou. É que, na problemática como na respetiva notação e expressão verbal, o Libro de Álgebra continua a direção que proximamente remontava à Summa de Arithmetica Geometria Proportioni et Proportionalita, que Luea Pacioli (c. 1445 t 1514?) publicara em Veneza em 1494 e Pagnino reeditara nesta mesma cidade em 1524. Os méritos intrínsecos deste livro encontram-se hoje diminuídos da antiga estimação, mormente depois da divulgação nos meados do século passado da obra de Leonardo Pisano, ou Fibonacci (c. 1170 1- p. 1240), mas a sua significação histórico-matemática como que se robusteceu e dilatou com o conhecimento da história das matemáticas, e de outras circunstâncias, a começar na de haver sido a primeira obra de aritmética e de álgebra divulgada pela arte de Gutemberg. É que ele estabelece a divisória entre a orientação medieval, encadeada à tradição do divulgadíssimo De institutione arithmeticx de Boécio (c. 480-524), e a orientação da Renascença, de sentido algébrico, sendo dos seus temas, proposições, notação e vocabulário que os algebristas de Quinhentos partiram e, consequentemente, se firmou a possibilidade de progressos pela harmonia de esforços e mútua compreensão da problemática .

De surto e incremento na terra úbere de Itália, a nova arte atingiu os países da vanguarda científica, que pelo geral adotaram a nomenclatura da Summa, notadamente a Alemanha, onde a álgebra se designou de cossiche Kunst e os seus cultores de Cossisten, palavras derivadas do italiano cosa, que era o termo com que se designava o que hoje exprimimos por “incógnita” (x).

Em Portugal, é de crer que foi Pedro Nunes quem primeiro a conheceu, porque tudo leva a crer que os contemporâneos que estudaram matemática em Paris, como Francisco de Melo, não ultrapassaram os princípios da aritmética.

Tivesse sido ou não o primeiro português que leu a Summa de Fr. Lucas, e o fato é impossível de precisar com exatidão, é incontestável que o Libro de Algebra se filia diretamente na obra do matemático italiano, na “qual todos despues nos auemos aprouechado” como ele próprio declara no posfácio aos leitores (vol. VI, p. 393).

Por dois modos influiu a Summa na mente do nosso cosmógrafo: pelo incentivo da novidade e pelo íntimo ditame da clareza e do encadeamento lógico dos raciocínios. O primeiro, rasgando-lhe caminhos do futuro, animou-o a desenvolver um ramo das matemáticas que mal despontava; e o segundo impôs-lhe como que o dever de dar ordem lógica ao que se apresentava desordenada e confusamente —”Yo en este my libro siempre lleuo orden”, proclama (vol. VI, p. 393) — e de demonstrar o que não era ou estava mal demonstrado. É que na obra dos seus predecessores italianos, únicos que Pedro Nunes considerou e parece ter conhecido, afirmando Bosmans que desconheceu os algebristas alemães, encontrava ao lado de méritos louváveis defeitos que cumpria corrigir. Assim, na Summa, Fr. Lucas expunha a álgebra “tan sin orden, que resuelue muchas questiones por esta arte, antes de hazer mencion delia” (vol. VI, p. 393); Cardano, na Ars Magna, “tuuo en el principio orden, mas despues escriue confusamente y haze de todo una ensaiada mal hecha, y despues embio atro libro de Algebra [De aliza regula], que es mi chaos” (ibid.); e por fim Tartaglia, com ser “muy gran maestro de cuenta y buen Geometra”, nem por isso se livrou do defeito de pressupor regras que não demonstra e de apresentar casos “muy difficiles y de operacion muy prolixa” (ibid.).

O Libro de Algebra procede, assim, dos dois grandes impulsos alentadores da atividade científica: a indagação de novos conhecimentos e a clarificação, simplificação e maior acessibilidade dos conhecimentos já sabidos. É este, quiçá, mais saliente que aquele, mas de um e de outro não faltam os testemunhos assim como os sinais de Pedro Nunes haver tido a nítida consciência dos méritos do seu Libro, tanto sob o ponto de vista prático como teórico, e do que trazia de novo ao pecúlio do saber.

A estimação pública não traiu o legítimo orgulho do autor, porque se o Libro de Algebra não alcançou a fama e divulgação do De crepusculis e do De arte atque ratione navigandi logrou não obstante a atenção dos doutos. É que, como obra de transição, tornou-se por assim dizer anacrónico volvidas apenas duas décadas sobre a sua publicação, devido à genial inovação de Viète, em 1591, no In aliem analyticam isagoge. O novo simbolismo literal do matemático francês iniciava uma era, que seria assinalada pela autonomia e generalidade da álgebra e que envolveria no mesmo véu de esquecimento tudo o que lhe ficava para trás.

O Libro de Algebra não podia, pois, escapar ao oblívio em que as inovações científicas sepultam os escritos que perderam atualidade; no entanto, durante os anos em que foi atual conheceu a estimação dos doutos e esteve à beira da divulgação universal pelas traduções para francês e para latim. Estas traduções ficaram inéditas.


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