Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

A vivência da universalidade e radicalidade da dúvida apresenta, incontestavelmente, analogias impressionantes nos dois filósofos, notadamente de vocabulário, e num como noutro é acompanhada do desejo de alcançarem a verdade por via estritamente racional, embora na mente de Sanches com menos esperança A nosso ver, os dois filósofos somente têm de comum a vivência psicológica da dúvida radical e o anelo de a superarem pela fundamentação de uma teoria da Ciência. São estas analogias no plano psicológico que aproximam Descartes de Sanches — e somente neste plano, pois nem a justificação da dúvida atingiu em Sanches a profundidade analítica da de Descartes, nem a argumentação do Quod nihil scitur feriu a própria essência da racionalidade como o argumento cartesiano do malin génie, nem a ulterior desenvolução do pensamento foi a mesma nos dois filósofos.

Ambos duvidaram e a partir da dúvida, embora em grau e forma mentis diversas, fizeram da fundamentação da Ciência um problema filosófico, mas na consciência reflexiva de Sanches a dúvida não resultou, corno em Descartes, do exame parcelar da exatidão dos conhecimentos literários e científicos, das lições do grand livre du monde e da veracidade da referência à objetividade do que se apresenta como exterior à consciência.

Descartes, havendo levado a dúvida à existência tal e qual das coisas materiais e à estrutura do exercício da própria razão, superou-a, afinal, pela apreensão do cogito, pela análise das consequências lógicas que esta primeira verdade desentranha e pela suspensão provisória do cogitatum, isto é, do objeto ou referência intencional; Sanches, pelo contrário, olhos fitos na imediatidade dos dados sensíveis, isto é, dos factos e dos objetos, em vez de encontrar o termo da dúvida no cogito, isto é, na consciência que cogita, encontrou-o nos cogitata, isto é, na coisa dada ou intencionalmente referida no pensamento que cogita. A diferença implica divergências profundas e radicais. Assim, Sanches, não foi, nem podia ir, além da apreensão do que lhe era dado como real, pelo que o seu ideal de Ciência se apresenta como essencialmente mostrativo. Descartes, pelo contrário, foi do concreto à superstrutura, isto é, à construção de um mundo real, coerente logicamente com dados tidos por consistentes, recusando-se a aceitar, como Sanches, que o imediato da experiência fosse a expressão da realidade autêntica. Além disto, para Sanches, a evidência foi sinónimo da imediatidade dos dados da perceção e não, como para Descartes, da irresistibilidade lógica da clareza e distinção das ideias no juízo. Por isso, o filósofo francês empreendeu a sua genial jornada seguindo inicialmente a via do idealismo, enquanto Sanches não abandonou nunca, nem podia abandonar, o terreno do realismo ingénuo, pelo que a marcha do seu pensamento se não desenvolveu com a fecundidade criadora da de Descartes, detendo-se, na reflexão epistemológica, quase exclusivamente na refutação das conceções contrárias à sua intuição de que o conhecimento exato somente pode dar-se na e pela perceção sensível.

Sanches inicia o seu arrogante Quod nihil scitur com a proposição — «nem sequer sei que nada sei”—, logo seguida desta outra, que é a transposição do cepticismo subjectivo para o ceticismo universal e objetivo: «nada se sabe», estabelecendo que se for capaz de provar esta segunda proposição «concluirei razoadamente que nada se sabe, e se não for capaz, tanto melhor, por ser isso que comecei por afirmar».

Os primeiros períodos colocam, pois, o leitor perante a alternativa da dúvida meramente subjetiva ou da dúvida universal, e por paradoxal que pareça, Sanches inseriu nas suas proposições negativas o nervo do velho dilema contra o ceticismo: ou se sabe, ou não se sabe: se se sabe, é falso que nada se saiba; se não se sabe, é também falsa a mesma afirmação, porque quem afirma, sabe.

O problema posto pelas duas proposições iniciais comportava a possibilidade de caminhos diversos. Excluído o de nítida orientação epistemológica, que mais tarde, no final do século XVII, Locke iniciaria com o Ensaio sobre o Entendimento Humano como que às apalpadelas e Kant percorreria com genial clarividência na Crítica da Razão Pura, Sanches viu somente estes dois: o de sentido psicológico e o de sentido teórico sobre o objeto da Ciência. O primeiro, partia da «contemplatio animae», das respetivas faculdades e operações, era cheio de dificuldades e de embaraços e como que implicava a consideração autónoma, própria de um tratado De anima, que Sanches, coerentemente, se propôs escrever, como acima dissemos; o segundo, tinha em vista o conceito de Ciência e respetivas propriedades.

Foi este o caminho seguido no Quod nihil scitur, pois, ao pensá-lo, Sanches se situou, propriamente, no terreno do que lhe era dado historicamente, ou sejam as definições da Ciência, em ordem ao exame crítico dos respetivos fundamentos.

Como Descartes, Sanches partiu do estado de pensamento que não possui o saber e também fitou a mente no ideal de uma «ciência firme», mas seguiu por via diversa da do iniciador da filosofia moderna. O autor das Meditações Metafísicas partiu da própria experiência pessoal e foi procurar as razões da sua dúvida na constituição dos sentidos e na falibilidade da razão, encontrando a primeira certeza no cogito, ergo sum, isto é, no dado indubitável da sua existência como ser que pensa.

Sanches, pelo contrário, não partiu de si mesmo, mas do que era dado como essencial ao conceito de Ciência, pelo que indagou, como enuncia o título do seu livro, o Porque Nada se Sabe, em vez das razões psicológicas e metafísicas da sua própria dúvida. A reflexão sanchesiana da dúvida nasceu, assim, ao contrário da de Descartes, extrovertida, voltando-se logo, desde o primeiro momento, imediata e diretamente, para o que se lhe oferecia como expressão condensada e perfeita do saber: a definição.

Com Aristóteles, todo o ensino escolástico, de sentido realista, teve por indubitável que saber é definir e que, consequentemente, a definição perfeita exprime a essência da coisa definida e resume o saber acerca dela.

Foi contra esta conceção e respetivos fundamentos que Sanches pensou o Quod nihil scitur e lhe estabeleceu como alicerce o pressuposto de que todas as definições são nominais e, portanto, inconsistentes, incertas e variáveis, dada a mutabilidade das palavras e o convencionalismo com que nascem.

Analisando-se a si mesmo e remontando às nascentes do que era dado à sua consciência cognoscente como conhecimento, Descartes discriminou os conhecimentos que advêm pelos sentidos dos que se elaboram pela razão, mas Sanches, que jamais duvidou da existência das coisas concretas, da existência do espírito e da capacitação do espírito para conhecer as coisas na imediatidade com que se oferecem à intuição sensível, não se interrogou a si mesmo como ser que conhece e enquanto conhece, mas como ser a quem se apresenta uma scientia constituta e se pergunta por que caminhos e com que fundamentos se chegou à constituição dessa scientia.

Quanto a reflexão de Descartes foi introvertida foi a de Sanches extrovertida, por incidir sobre coisa constituída e dada extrinsecamente como realidade impessoal e objetiva. No íntimo, o Quod nihil scitur toma partido em relação a questões postas com mais ou menos clareza no ensino coetâneo da Lógica e que, para empregar a terminologia da controvérsia de realistas e terministas no final do século XV, se pode sintetizar nas expressões então em voga do ire ad res e do ire ad terminos. Daqui, a feição militante da sua argumentação, tão nervosa que parece por vezes dirigida, como já dissemos, contra alguém cujo nome se vela. A sua crítica visa diretamente o ire ad terminos, quer a expressão se entenda no sentido sintetizante da definição como sinónimo da ciência em resumo, quer no sentido analítico, de ciência que se constrói a partir de definições nominais; por isso, o Porque Nada se Sabe dá as razões da inconsistência e da incoerência das conceções da Ciência que se desviam ou ultrapassam o ire ad res, sem aliás esboçar a conceção fundada nesta via, e que foi, ou como é mais verosímil, devia ser objeto de um livro que Sanches escreveu e se perdeu ou pensou escrever e não chegou a redigir — o De modo sciendi. Coerentemente com este objetivo, o Quod nihil scitur procura mostrar que as definições da Ciência mais aceitas ao tempo eram verbais, gerando um tipo de saber em relação ao qual se pode afirmar que «nada se sabe».


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