Excerpta Bibliographica Ex Bibliotheca Columbina

Os bibliógrafos do séc. XVIII citam já esta obra. Assim Nicolau António, na BibL Hisp. Nova (Madrid, 1783, I, 627), descreve-a sob o título — Declaración o Relación de la Índia y de sus Reynos y Sefiorios, quáles son Moros y quáles Gentiles, y de sus costumbres y otras cosas; e Barbosa Machado repete este título, o que nos leva a crer que ambos o copiaram de algum bibliógrafo anterior, talvez António de Leão ou do seu adicionador: «João da Costa cuja patria, e estado de vida se ignora, e somente se sabe pela noticia relatada em a Bibl Orient. de Antonio de Leão modernamente addicionada Tom. I Tit. 3. col. 58. que escrevera — Relação dos Reynos, e Senhorios da «índia, quais são de Mouros, quais de Gentios, e de seus custumes. Ms. Foi traduzida em Castelhano no anno de1624.» (BibL Lusit., II, 640). O abade de Sever equivocou-se no ano em que foi feita a tradução castelhana, pois a indicação do ano de 1524 feita por E Colombo é digna de todo o crédito. Mas João da Costa seria o autor e tradutor desta obra, ou tão-somente seu tradutor? Pela descrição de Fernando Colombo somos levados a crer que João da Costa escrevendo este livro, talvez fosse português; porém, pelo testemunho de Argote de Molina, devemos considerá-lo como espanhol, vecino de Andujar. Millares Cano, anotando a indicação deste ms. do catálogo de Molina, acrescenta: «Tradújola Acosta de un ignorado autor portugués, por orden de D. Luis Pacheco en 1524» . Millares não cita a fonte desta notícia, que não pudemos precisar, mas pela probidade e crédito deste erudito, é digna de toda a atenção.

Um momento suspeitámos que este ms. poderia ser uma tradução do chamado Livro de Duarte Barbosa; mas a circunstância de Fernando Colombo os ter distinguido no seu Registrum, obra de consciente bibliófilo, fez-nos pôr de parte esta hipótese.

FERNÃO DE MAGALHÃES

E O «LIVRO» DE DUARTE BARBOSA

No Abecedário, col. 627, exarou Fernando Colombo o seguinte registo:

11 —Fernandi magallanes relacion de la india de portuga'. en espa Fio' de mano. — 15.293.

Esta concisa notícia, ignorada de todos os biógrafos do imortal navegador, suscita um delicado problema bibliográfico, porque é digno da maior ponderação o registo columbino.

Fernando Colombo, além de erudito e circunspecto bibliófilo é possível que tivesse conhecido o circum-navegador em Sevilha ou na Corte (Medina del Campo ou Valladolid), e em todo o caso, mais tarde (1526-1529), quando as exigências oficiais lhe impuseram estreitas relações com os pilotos e cartógrafos da Casa de Contratação de Sevilha (Casa Lonja) e o exame da questão das Molucas (Junta de Badajoz), não lhe faltariam informações precisas, de que o seu espírito foi tão curioso. Transmitir-lhas-ia, acaso, o português Diogo Ribeiro, sogro de Fernão de Magalhães, e cuja mestria em «hazer cartas e astrolábios» levou Carlos V a nomeá-lo colaborador de E Colombo na própria Real Cedula (1526) em que cometia a este o encargo de corrigir as cartas e mapas-múndi utilizados na navegação ?

O sentimento de admiração só se manifesta verdadeiramente quando a morte destruiu uma personalidade, que se ergueu acima dos contemporâneos. É o momento em que a lenda se começa a tecer e este sentimento tanto pode degenerar na curiosidade que se compraz no episódico, como recolher os factos profundos, salvaguardando-os para os vindouros. Colombo não deixaria de interrogar Diogo Ribeiro, de quem se tornara amigo, e da sua boca ouviria o relato dos incidentes, das esperanças e dos temores do genial empreendimento. Se o testemunho columbino é, como creio, fidedigno, a que livro ou documento se referira?

Gaspar Correia, de mentalidade ingénua, sem espírito crítico, mas fiel na narração de factos a que assistiu ou pôde comprovar , confessa nas Lendas da índia (1-1, 357) nada escrever sobre as terras e costumes das gentes do Malabar porque, dentre outros motivos, «ouve alguns que o fizerão, em que foy hum delles Duarte Barbosa, sobrinho do feitor de Cananor Gil  Fernandes Barbosa, que fez, hum Tratado, que eu vi, de todalas terras, gentes, leis, costumes, e tratos, começando dos Lequeos, correndo todo o mar, que acabou no cabo da Boa Esperança»  . Este testemunho é incontroverso, porque, embora Correia tivesse trocado o princípio pelo fim, os limites coincidem precisamente com o texto do Tratado, primeiramente publicado na versão italiana de Ramusio (Navegationi et Viaggi, I, 1563), e cujo texto português só se divulgou em 1812, graças à diligência do académico Sebastião Trigoso, sob o título, por que era conhecido: Livro de Duarte Barbosa . Foi este texto que M. L. Dames utilizou na sua tradução, tão sabiamente anotada, e que a Hakluyt Society editou: The Boock of Duarte Barbosa. An account of the countrie bordering on the indian Ocean and their inhabitants, written by Duarte Barbosa and completed about the year 1518. a. D.s 2 vols. Londres, 1918. A diligência de Ramusio e a sagacidade crítica de Trigoso,

Lord Stanley of Alderley e Dames pareciam dever considerar-se como a melhor contraprova do insofismável testemunho de Gaspar Correia; mas não obstante esta persistência ininterrupta da avisada tradição, recentemente tomou vulto a já antiga suspeição da autenticidade do trabalho de Duarte Barbosa. Sabia-se existir na Biblioteca Nacional de Madrid (Res. 2.° II) um manuscrito em castelhano, com letra do séc. XVI, «hecho con esmero, como ejemplar destinado a algun personaje muy alto y distinguido de la epoca», (Blázquez) com o titulo: Descripcion de los reinos, costas, puertos e islas que hai en el mar de ia India oriental i costunbres de sus naturales: su gobierno, religion, comercio i navegacion, i de los frutos i efectos que producen aquellas vastas rejiones, con otras noticias mui curiosas; compuesto por Fernando Magallanes, piloto portugues que lo vio i anduo todo .

Como era natural, não faltou quem desse crédito à atribuição do códice castelhano e enaltecesse a gloriosa biografia de Magalhães com o primor da composição dum tratado geográfico e etnográfico do oriente português. Arana fez-se eco deste juízo ; mas a tempo o corrigiu, ao saber as opiniões de Martin Fernandez Navarrete, que suspeitara não pertencer ao circum-navegador, e de Francisco Adolfo Varnhagen, que examinando aquele códice verificou não passar duma imperfeita tradução da obra de Duarte Barbosa • A tradição encontrava assim fundamentos novos; mas o Sr. André Blázquez y Delgado Aguilera, ao prologar a edição do manuscrito castelhano , repudiou-a, e com argumentos negativos pretendeu justificar a autoria de Magalhães.

Ramusio, que atribui a obra a Duarte Barbosa, datando-a de 1516, diz existirem ao tempo dois manuscritos, um em Lisboa, outro em Sevilha . Nenhum dos atuais manuscritos, quer os portugueses, quer os espanhóis, são datados, e desta circunstância, e sobretudo das referências que no Livro

se fazem à tomada de Barbora (1518) por António de Saldanha e de Zeila (1516), conclui o Sr. Blázquez que «no fue escrito em 1516 y que Ramusio estuvo muy mal informado».

Sem dúvida, como lúcida e eruditamente demonstrou Dames  não deve atribuir-se grande valor a esta data, e embora Ramusio a não tivesse fixado arbitrariamente, pode supor-se ter existido na redação que utilizou. O texto de Barbosa sofreu interpolações, já da mão do seu autor, já de outrem, pois em 1518, ano em que se realizou a tomada de Barbora, estava já em Lisboa ou talvez em Sevilha. Invoca ainda o Sr. Blázquez a estada de Magalhães na Índia, e «que era competente en cosas de navegacion y cosmografia lo demuestra su Memorial escrito quando partio, e es coincidencia significativa que en el consigne precisamente lo que no correspondia a la corona de Portugal y este trabajo se complemente precisamente con la «Descripcion» o manuscrito que publicamos empezando con el cabo de Buena Esperanza, terminando con las últimas tierras descubiertas por los portugueses» (p. 8). Também se não nos afigura convincente este argumento. Fernão de Magalhães partiu para a Índia na armada de D.S Francisco de Almeida, em Março de 1505, e logo no ano seguinte acompanha Nuno Vaz Pereira, encarregado pelo vice-rei de pacificar os povos da costa oriental da África. Desconhece-se o tempo que permaneceu neste continente; mas em 1508 está em Lisboa, e neste mesmo ano sai do Tejo, na armada de Diogo Lopes de Sequeira, demorando-se, ao que parece, até 1511, pois nos meados de 1512 já se encontra em Lisboa. Esta viagem parece ter oferecido a Magalhães o ensejo de conhecer, além de Malaca, as Molucas; mas em tão pouco tempo, distraído e ocupado pelas necessidades da guerra, mal se compreende que pudesse coligir e fazer as judiciosas observações etnográficas e geográficas que o Livro pressupõe. Em Duarte Barbosa, pelo contrário, concorrem todas as condições. Partindo para a Índia à volta de 1500, por lá se demora até aos anos de 1516-1517, pois em 1518 ou 1519 já está em Sevilha. Em 12 de Janeiro de 1513, quando escrivão da feitoria de Cananor, dirige uma carta a D.S Manuel e nela lhe relata «as cousas de Cananor... porque estas sam as que eu sey lympamente, asy pela lymgoa, como por saber de muyto tempo, que qua estyve da outra vez, os tratos e costumes e condições asentadas pelo almirante... »e Afonso de Albuquerque, informando igualmente o rei, diz: «Faley a EIRey de Cochim ácerqua de se tornar christaão, como me vos alteza spreveo; era hi duarte barbosa por lingoa... » .


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Vamos corrigir esse problema