3. Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo

Foi esta visão, quase evangélica, da fraternidade de todos os homens e de todos os povos, apoiada sobre a ideia de que «superior ao homem não há senão Deus, a justiça e a lei social, que deve ser a sua expressão», que conduziu Henriques Nogueira à cidade ideal. Estas ideias e estes sentimentos convertiam a República num programa de ação. Para quê a defesa teórica, se os seus princípios e objetivos se impunham com irresistível evidência, se o seu advento era fatal na marcha progressiva da humanidade para o melhor? Por isso os Estudos sobre a reforma desconhecem a crítica política, à maneira do século XVIII, e não apresentam o ideal democrático como o termo de um juízo comparativo.           

Projetando-se no futuro, são um guia de ação, e ao mesmo tempo um abecedário de imperiosas realizações que, transformando o Estado e a sociedade, trariam consigo a reforma do homem, dos seus costumes e da sua moralidade. A cidade ideal ignora o direito divino, alicerce do absolutismo, a legitimidade, base da monarquia constitucional, e o direito da força, apoio do despotismo: é o regime da plena soberania do povo, fonte de todo o poder legítimo. Na reinante monarquia representativa, pela qual se derramara tanto sangue, via um «fruto da árvore do mal», da dissimulação e da mentira.

Representando um período de transição entre o absolutismo derrubado e a liberdade vindoura, a coerência dos princípios e a honradez dos propósitos ditaram-lhe o dever de opor a este «complexo monstruoso e antinómico de poderes, que umas vezes se guerreiam, outras se coligam contra o povo», as «bases sólidas e naturais do governo da sociedade». Estas bases, dissemo-lo já, são os «princípios santos, justos e humanitários da liberdade, igualdade e fraternidade de todos os indivíduos e de todos os povos». A mágica divisa do republicanismo era já velha de alguns decénios, mas a singularidade de Henriques Nogueira, entre nós, consiste em a ter rejuvenescido com um sentido novo, oposto ao individualismo racionalista do século XVIII e ao liberalismo burguês da Carta. Em seu conceito, a liberdade política «significa o direito de praticar tudo o que não ofender a lei do justo, a qual consiste no maior bem de todos em geral e de cada um em particular», e este conceito traduz evidentemente uma extensão da essência da liberdade no sentido social. Esta extensão acentua-se mais frisantemente ainda nos conceitos de igualdade e de fraternidade. A igualdade, na aceção política, «é o direito que cada um tem de quinhoar a sua parte de soberania nos negócios públicos, de concorrer aos cargos administrativos, de gozar ou sofrer as disposições da lei como todos os outros cidadãos», mas a sua essência consiste em minorar os efeitos do facto da desigualdade física e moral, destruindo os elementos artificiais em que esta assenta e colocando «todos os desvalidos num ponto de partida idêntico ou quase idêntico». Este objetivo é, de resto, um corolário da conceção política da fraternidade, a qual é «o direito que cada um tem a ser auxiliado e protegido», e muito mais ainda da sua aceção social, ou seja a harmonização dos interesses de todos os homens «de sorte que nenhum perca e todos ganhem». Fundindo intimamente os três alicerces da cidade nova e da política humanitária o pensamento de Henriques Nogueira distancia-se longamente do individualismo dos românticos liberais, orientando-se num rumo social, quer no apelo permanente à «associação» e à solidariedade, quer na tendência para o nivelamento moral e de bem-estar de todos os indivíduos. Iguais os homens perante a «lei do justo», residindo a soberania na comunidade, o direito do povo a governar traduz-se praticamente na escolha dos funcionários ou agentes, a quem cumpre a direção suprema dos negócios e interesses comuns. Esta escolha realiza-se pela eleição, cuja pureza exige que o voto se torne universal, livre, ilustrado, público, direto, inviável, obrigatório, legítimo e se exerça comodamente.

É na assembleia dos representantes do povo, como delegados diretos do país, que se concentra o poder supremo. Una e indivisível — Henriques Nogueira julgava absurdo o sistema bicameral e indigna de crítica a existência de uma câmara de pares —, à assembleia, júri supremo, cumpre a delegação e escolha do ministério. «Por qualquer lado», escreve, «que se considere, a divisão do poder supremo do Estado é sempre a origem de grandes calamidades. Se existe um chefe do poder executivo, eletivo ou vitalício, rei ou presidente, pouco importa, mas não emanado da assembleia legislativa, se esta se divide em duas câmaras, os inimigos do povo têm onde assentar os seus arraiais. Umas vezes, fazendo-se fortes em volta de um dos poderes, ajudam-no a guerrear aquele que se opõe às suas tentativas; outras vezes contentam-se de semear a discórdia, incitando-os a odiar-se reciprocamente». Nada mais simples que a ordenação do poder executivo.

Inspirando-se em Silvestre Pinheiro Ferreira, de quem sob certos aspetos foi continuador e herdeiro espiritual, entendia que a divisão dos ministérios devia fazer-se «por um método filosófico», isto é, obedecer aos fins supremos da administração, os quais dizem respeito à conservação e defesa do país, à instrução, cultos, justiça e salubridade, e à riqueza, comércio e indústria. Por isso, em vez do quadro pomposo das secretarias do Estado monárquico, propunha a existência de três ministérios — Segurança pública, Educação pública e Economia pública —, compreendendo cada um várias direções, e cada direção, além de certo número de intendências, um delegado especial em cada município com funções fiscalizadoras e executivas dos trabalhos respetivos. Na arquitetura desta construção política descobre-se a traça dos teóricos da revolução de 1848, sobretudo Luís Blanc. O mérito de Henriques Nogueira não reside, porém, na especulação filosófica sobre os fundamentos da democracia e da república. Uma e outra foram para ele os termos da evolução da humanidade e dados imediatos da consciência moral. O problema que se propôs foi um problema de organização, e é interessante notar que é precisamente no plano prático da reforma da administração pública que se move a sua alma de romântico. O romantismo, sob qualquer ângulo que se considere, foi um movimento de nostalgia. Nostalgia da Idade Média, nostalgia do país distante no tempo ou no espaço, nostalgia da vida pura do sonho e da imaginação, pouco importa, encontramo-nos sempre perante almas insatisfeitas, que situam a felicidade, se ela existe, num mundo diferente do mundo que as cerca. Romântico pela época, romântico na efusão sentimental e romântico ainda na fuga para o futuro, a conformação da sua alma não lhe fez perder o sentido das realidades e até lhe conquistou para as suas ideias o entusiasmo de numerosos leitores. A linha geral da sua reforma define-se pela simplicidade e pela bondade. A. «desumana» e complicada máquina administrativa da monarquia constitucional opunha a simplicidade, mas esta simplicidade, ditada pela «lei do justo, não podia obter-se sem amputações radicais e inovações fecundas. As reformas que inculca, muitas das quais persistem como reivindicações da consciência democrática contemporânea, convertem-no num revolucionário, porém de um revolucionarismo construtivo, que tudo fia da bondade dos homens e da extirpação das raízes sociais do mal. Assim, por exemplo, o exército permanente, «invenção do absolutismo» e «instrumento nulo ou impotente para o bem, ativo e poderosíssimo para o mal».


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