3. Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo

«O exército, se tal nome lhe quadra bem, não pode ser entre nós senão uma escola da arte de guerra, enquanto este termo e o facto, que lhe corresponde, não pertencerem exclusivamente ao domínio da história, como o feudalismo, a inquisição, o absolutismo, a censura, e outras quejandas provações por que tem passado a mísera humanidade. Como tal, reduzido a um corpo científico das diversas armas, ele não deve custar ao país senão uma verba diminuta, que de nenhuma sorte fira os grandes interesses da sociedade. Organize-se essa mocidade, ativa, valente e moralizada em batalhões de guarda nacional, e ter-se-á uma força respeitável, pelo seu número e qualidade, e capaz de satisfazer a todas as exigências do serviço público. Deste modo o cidadão-soldado não carece, em tempos normais, de interromper as suas ocupações, nem de abandonar a sua família e o lugar da sua residência; e o Estado aproveita consideravelmente por não pagar soldos em tempo de paz. As funções militares, hoje entregues, pela máxima parte, a indivíduos estúpidos ou pervertidos, são das mais importantes de que pode ser investido um cidadão. E por isso têm direitos muito sagrados à estima pública e deveres mui pouderosos a cumprir em relação ao país e às pessoas e propriedades, aqueles que prestam este valioso tributo de sangue».

Analisar um a um os seus planos reformadores seria fastidioso, tanto mais que muitos se incorporaram no património da nossa civilização; em todo o caso merecem que sejam evocados a defesa da gratuitidade da justiça, a necessidade das casas de correção para criminosos, as missões, escolas e feitorias como instrumentos da colonização, organização do crédito hipotecário e dos bancos municipais, o auxílio à agricultura, ao comércio e à indústria ao lado do encorajamento pelas exposições agrícolas, associações comerciais, e oficinas modelos, criação de asilos, associações de bem-comum e caixas económicas, difusão de escolas e bibliotecas, etc.

Nesta visão da sociedade nova, sempre entusiástica e por vezes profética, palpita a ânsia de erguer a vida pública portuguesa ao nível de uma democracia ideal, pacífica e cândida. Dir-se-á que ela se desenvolve frequentemente no plano supranacional de quem contempla objetos ideais da humanidade, o que aliás só honra o seu espírito e o seu ânimo; no entanto, é incontestável que, embora conjugasse os interesses limitados da pátria com os fins comuns da humanidade, o patriotismo foi o guia supremo desta jornada singular na nossa literatura política e o seu pensamento de romântico amou a positividade e a realização prática. Muitas das suas ideias penetraram na realidade, e algumas que pairam ainda no domínio ideal não são porventura aspirações veementes da democracia contemporânea?

O município, dissemo-lo já, é uma das quatro colunas da sua construção política. Com Herculano, Henriques Nogueira foi um dos grandes apologistas do municipalismo. O Mestre reconstruíra com penetrante erudição a vida do município medievo, tornando-se ao mesmo tempo campeão da teoria segundo a qual o liberalismo lusitano mergulha as suas raízes indestrutíveis na vitalidade das velhas liberdades municipais. Esta conceção, à qual os grandes historiadores têm ficado fiéis, a despeito da sua origem romântica, singularizando a fisionomia histórica do povo português, a cujas instituições medievais atribuía uma essência democrática, foi retomada num sentido pragmático por Henriques Nogueira. «A forma municipal, atravessando os períodos bárbaros, casando-se com a enérgica altivez daqueles homens rudes mas independentes, que nos séculos IV e V vieram insuflar vitalidade numa sociedade corrompida, entretecendo-se nas instituições dos povos modernos, ajudando a grande luta da monarquia contra o feudalismo, e empenhando-se na subsequente contra o seu aliado e futuro opressor — tem sido, é e será sempre, talvez, o mais valioso baluarte da liberdade». Forte com o apoio de Herculano, «seu mestre e amigo», e convicto dos benefícios da associação, Henriques Nogueira propugnou, como nenhum outro contemporâneo, a reorganização da vida pública com base no município. Foi o semeador desta ideia, inseparável desde então das reivindicações republicanas, e cuja coerência logicamente o conduziu à crítica da organização administrativa criada por Mouzinho da Silveira (1832), a qual, com vicissitudes várias posteriores, estendeu sobre todo o país a unidade compressora.

Os perniciosos efeitos da organização centralista, que faz do município uma «máquina informe do feudalismo administrativo», eram manifestos: a pobreza, o abandono e a destruição das liberdades concelhias e do espírito de iniciativa pela dependência das veleidades e caprichos ministeriais. Ao espetáculo de «degradação material e moral a que têm levado a existência da grande maioria dos concelhos os governos antiliberais, que quase sucessivamente temos tido», opunha a visão libertadora dos municípios, base única da divisão territorial e «imagem do Estado em miniatura». «Paládio de importantes interesses da localidade, o município deve ter uma existência independente, dentro dos limites da lei; uma administração solícita e ilustrada; uma representação numerosa, a quem compete ser o órgão fiel de todas as necessidades públicas, a proteção nata contra as infrações da lei, e a potência intermediária do direito de petição e de queixa; um tribunal de justiça, de segunda instância; uma série completa de instituições de toda a ordem [como banco, colónias agrícolas, escolas, granja-modelo. misericórdia, etc.] e a faculdade de enviar diretamente à assembleia central o número de representantes do povo, que corresponder à sua povoação». Basta-nos para o nosso objetivo a apreensão desta ideia fecunda, a qual, envolvendo a reorganização do Estado no sentido da descentralização, convertia ao mesmo tempo a vida municipal numa escola de formação democrática. Por esta reorganização, as «categorias administrativas, tão absurdas como artificiais, províncias, distritos, comarcas», cediam o lugar às instituições de igualdade, que eram os municípios, transformando-se o Estado numa espécie de federação de municípios, «ligados pela intimidade de raça e de língua, que vivem uma vida especial pela memória de seus grandes homens e pela história de seus feitos, de suas vitórias e revezes».

Por que não dilatar à esfera internacional, particularmente às relações entre povos afins, esta conceção de paz e de solidariedade?

O patriotismo guerreiro e o espírito de conquista e de exclusão apareciam-lhe como aberrações morais, porque «é necessário que a felicidade de cada povo se faça derivar da de todos os outros povos, que em cada povo, a felicidade de cada classe de cidadãos se faça derivar da de todas as outras classes. Sem isto a felicidade nunca será nem completa, nem duradoira».

«A humanidade inteira», escreve nos Estudos sobre a reforma, «nada mais deveria ser do que uma federação de nações, mais ou menos adiantadas, que o instinto de conservação e aperfeiçoamento levasse a entender-se, a aproximar-se, a amar-se enfim, para que fosse uma realidade aquele sublime desideratum do Evangelho, omnes unum sint, para que todos formem um só indivíduo. Oh! mil vezes feliz a época em que os diversos povos da terra, unidos por um sincero espírito de fraternidade e proteção recíproca, trocarem de bom grado os instrumentos da guerra e da prepotência pelos imbeles utensílios do trabalho, em que uma só lei, a justiça, e uma só religião, a caridade, guiarem os destinos do género humano!»


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