Introdução à ética de Espinosa

As provas espinosanas sucedem-se à determinação das propriedades e atributos da substância, ou por outras palavras, ao que é inerente à essência de Deus. Sob este ponto de vista, a desenvolução da Ética até à prop. XI, isto é, até às provas demonstrativas da existência de Deus, teve por objetivo mostrar que era necessária à mente, intro intellectum se assim se pode dizer, a existência da substância ou Deus, como condição sine qua non da pensabilidade do Mundo; agora, nesta proposição, empreende a demonstração de que extra intellectum Deus ou a substância existe realmente.

Deixando de lado a génese, os antecedentes e as primeiras expressões das provas no Tratado Breve e nas Epístolas, consideraremos exclusivamente as demonstrações da primeira parte da Ética.

As provas são quatro e foram expostas nas três demonstrações e no escólio da prop. XI. Embora as tenhamos discriminado nas notas a esta prop., convém considerá-las neste lugar separadamente:

I) Deus é substância; ora é da essência da substância que ela exista; portanto, é inconcebível que Deus não exista.

Como se vê, é uma prova ontológica. Pela estrutura do raciocínio, recorda a terceira prova cartesiana, ou argumento ontológico, mas diverge dela em deduzir a existência de Deus não da perfeição de Deus, como Descartes, mas da substancialidade de Deus.

O argumento significa que o ser infinitamente infinito, que é Deus, somente é pensável como existente —, «Se negas isto, concebe, se te for possível, que Deus não existe», são as primeiras palavras da demonstração. Dito de outra maneira: dada a essência de Deus, a sua existência tem necessariamente de se dar fora do intelecto que a pensa, visto nada poder existir nem ser concebido, senão na e pela substância.

Sob certo ponto de vista, este argumento é relativo, por pressupor a existência do pensar humano, que é um modo do Pensamento atributo de Deus; por isso se compreende que Espinosa tivesse excogitado outras demonstrações.

II) É inconcebível a não-existência de Deus; dando-se sempre uma razão ou causa, tanto para a existência, como para a inexistência seja do que for, é impossível conceber-se qualquer razão ou causa, intrínseca ou extrínseca, que obste ou iniba a existência de Deus.

Sendo assim, Deus existe necessariamente, e a sua existência dá-se com a sua essência, visto a impossibilidade lógica de se pensar o contrário.

III) Existindo seres finitos, tem que existir necessariamente o ser infinito. Com efeito, se somente existissem seres finitos dava-se o caso do ser finito ter mais potência que o ser infinito; ora isto é impossível, porque se o ser finito tem poder para se dar a existência, por maioria de razão o deve ter o ser infinito dado que a finidade é por definição (II) uma negação parcial da existência.

A substância, isto é, o ser existente em si e com infinidade de atributos, tem, pois, de existir com potência infinita, pois não pode recusar-se à ideia de infinidade o que se concede à de finidade.

IV) Se um ser tem tanto mais existência ou realidade quanto mais potência tem, segue-se que o ser em si, por si e com infinidade de atributos, existe necessariamente, porque a sua existência resulta exclusivamente da sua essência.

Pela forma, é o argumento de mais pureza ontológica.

As quatro provas assentam na propriedade inerente à substância de ser única e infinita, e com Huan podem resumir-se da seguinte maneira: «Há simultaneamente necessidade real de estabelecer a existência do Ser absolutamente infinito, pois sem ele não seria dada substância alguma; e necessidade lógica de admitir a existência do Ser absolutamente infinito, pois não pode conceber-se coisa alguma nele ou fora dele que lhe seja contrária ou contraditória; e além disto, há simultaneamente necessidade lógica de reconhecer ao ser absolutamente infinito um poder de existência sem o qual a própria realidade do finito seria inconcebível, e necessidade real de levar este poder a graus tanto mais elevados quanto mais se complica e enriquece a essência das coisas, até se alcançar uma potência infinita de existência absoluta»Embora se não possa dizer com segurança como e quando se formou na mente de Espinosa a conceção panteísta, é fora de dúvida que iniciou a redação da Ética com a ideia clara do que se propunha demonstrar. As exigências lógicas e metodológicas ditaram, porém, que procedesse gradualmente nas deduções e derivações; por isso não estabeleceu, de início, explicitamente, a identificação de Deus e da Substância. Ela estava implícita nas definições preliminares; porém, só depois de demonstrar a existência de Deus estabeleceu expressamente na prop. XIV a identidade de Deus com a noção de substância, tal como a havia definido e caracterizado anteriormente: «afora Deus, não pode ser dada nem concebida nenhuma substância».

Deus, isto é, a Substância, isto é, a Natureza —: tal é a equação que Espinosa estabelece, mas com terem estas palavras significação análoga, pode dizer-se com Leon Roth que Espinosa emprega a expressão Deus quando considera o Ser infinito sob o ponto de vista da origem; a expressão Substância, quando o considera sob o ponto de vista da matéria, e a expressão Natureza, quando o considera sob o ponto de vista da estrutura. As três expressões designam uma só e mesma coisa, considerada sob diversos pontos de vista.

Em resumo, e esquematicamente, são estas as ideias capitais contidas nas primeiras catorze proposições da Ética. Cumpre agora tomar conhecimento de alguns dos numerosos problemas que elas suscitam e das principais soluções. Reparti-los-emos relativamente à génese da teoria da Substância e à equação Deus = substância.

— Génese da conceção monista da substância

Foi correntio entre os historiadores da Filosofia anteriores à indagação das fontes ideológicas filiar-se o monismo substancialista de Espinosa no processo resolutivo de aporias da filosofia de Descartes. Hoje o tema já se não apresenta com a simplicidade de outros tempos, pois os resultados da inquirição sobre as origens intelectuais das conceções de Espinosa são tão numerosas e tão penetrantes, que o problema da génese do espinosismo, em geral, e o da conceção monista da Substância, em especial, se assinalam entre os mais versados e controvertidos da História da Filosofia Moderna.

A primeira explicação coerente foi dada pela tese da origem cartesiana. Antevista por Leibniz, que num passo de uma carta (II, 1697) a Nicaise escrevera que peut-on dire que Spinoza n'a fait que cultiver certaines semences de la philosophie de Mr. Descartes, a tese beneficiou da autoridade imensa de Hegel, ao afirmar nas Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (1836) que «o espinosismo é remate do cartesianismo», e tornou-se por fim objeto de minuciosas e penetrantes investigações, mormente por parte de historiadores franceses.

Em resumo sumaríssimo, pode dizer-se, grosso modo, que esta tese considera o monismo substancialista de Espinosa, já como sequência lógica da diferença estabelecida por Descartes entre a substância divina e as substâncias criadas, já como solução das aporias inerentes ao dualismo cartesiano, já como desenvolvimento de certas teses metafísicas, designadamente a identificação da matéria com a extensão, a necessidade racional, que Descartes derivava da liberdade divina, e a implicação recíproca da existência empírica e da essência, objeto de intuição intelectual.


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