Introdução à ética de Espinosa

Descartes afirmara que o nome de substância aplicado a Deus tinha um sentido que não convinha às criaturas, e que as substâncias criadas, isto é, a matéria e o espírito, se distinguiam pelos respetivos atributos essenciais, isto é, a extensão e o pensamento, sem os quais não podiam ser consideradas. Consequentemente, fora levado a formular duas definições diferentes, uma nas Réponses aux 2. objections—, «toute chose dans laquelle réside immédiatement comine dans un sujet, ou par laquelle existe quelque chose que nous apercevons, c'est-à-dire quelque propriété qualité, ou attribut dont nous avons en nous une réelle idée, s'appelle substance» —, outra nos Príncipes de Philosophie (I, 51) —: «Lorsque nous concevons la substance, nous concevons seulement une chose qui existe de telle façon qu'elle n'a besoin que de soi-même pour exister» (hic., p. 101).

A primeira destas definições, que Espinosa reproduziu nos Princípios de Filosofia de Descartes, tem o vinco do significado tradicional de substância e não se enlaça com a definição da Ética, cuja nota própria e diferencial não é tanto o existir in se como, principalmente, o per se concipi.

A segunda, pelo contrário, sugere a conexão que a primeira não comporta, pois, como escreveu Pillon, «da diferença estabelecida por Descartes entre a substância divina e as substâncias criadas podia sair logicamente o monismo substancialista de Espinosa. A substância divina sustenta continuamente as substâncias criadas e, única, existe por si, sustenta-se, por assim dizer, a si própria; é, pois, suporte delas, suporte universal e necessário, a substância das substâncias materiais e imateriais. Porque não fazer que ela suporte, sustente diretamente os atributos extensão e pensamento? Porque interpor entre ela e estes atributos, pretendidas substâncias que não podem subsistir se não forem constantemente sustentadas por ela e que não podem conceber-se separadas dos seus atributos?».

Por outra via se estabeleceu ainda a dependência conceptual do monismo substancialista relativamente a Descartes.

O filósofo das Meditações Metafísicas estabelecera como condição ontológica da pensabilidade do Mundo a existência de duas substâncias que permitissem a explicação coerente dos fenómenos físicos e dos fenómenos psíquicos: a matéria, com o atributo essencial da extensão, e o espírito, ou substância imaterial, com o atributo do pensamento. Considerando, porém, irredutíveis estas duas substâncias, Descartes tornava inexplicável a união do inextenso e do extenso, isto é, da captação de fenómenos materiais pelo espírito e da expressão física de atos psíquicos, notadamente voluntários.

A esta luz, Espinosa teria resolvido a aporia com a conceção monista do ser, pois a substância, sendo in se, per se e de infinitos atributos, bastava-se a si mesma e explicava satisfatoriamente a coexistência e o paralelismo do pensamento e da extensão, considerados como atributos de uma só substância e não como substâncias independentes e irredutíveis. O bissubstancialismo cartesiano, constituído por uma extensão que é somente extensão e pelo pensamento que é só pensamento, era superado pelo monismo da substância, ou Deus.

Esta tese, que apresentamos sob forma como que nuclear, alcançou largo e vário desenvolvimento, especialmente nas penetrantes análises de Albert Léon, admirável na sagacidade com que procurou mostrar que o espinosismo era o desenvolvimento dialético de princípios cartesianos, e de Léon Brunschwicg, não menos penetrante e mais profundamente, na demonstração de que o espinosismo saíra da reflexão do cartesianismo, do qual Espinosa se separara, dentre outras razões, por haver dado sentido dinâmico à conceção da substância.

O talento e o saber destas análises e explicações não são, porém, suficientes para levar ao convencimento de que o espinosismo se filia direta e principalmente, senão exclusivamente, no cartesianismo, já nas aporias que solicitavam uma superação coerente, já especialmente, no processo de dissolução e de transformação da categoria de substância. É, que a substituição da conceção de substrato pela de essentia actuosa, e a demonstração da unicidade e a afirmação da imanência conferem à substância espinosana propriedades que não é possível considerar como produto ou derivação puramente lógica de princípios cartesianos.

Por isso, a grande maioria dos historiadores e intérpretes de Espinosa abandonou a velha opinião por demasiado unilateral, pois embora seja incontestável a influência do pensamento cartesiano no vocabulário, no conteúdo e na estruturação da doutrina da Ética, nem o espinosismo pode reduzir-se a metafísica da substância, nem Espinosa foi, levado à filosofia pela problemática e pela lição de Descartes, nem as suas lucubrações podem ser amesquinhadas a passatempo engenhoso de quem se entretivesse a excogitar saídas airosas para as aporias e contrassensos do pensador genial das Meditações Metafísicas.

Coincidindo, porém, no repúdio da tese de filiação cartesiana, nem por isso se estabeleceu unidade de vistas entre os intérpretes do espinosismo. Concorreram para isso a complexidade do assunto, que se não sujeita à unilateralidade de um só ponto de vista, e a vastidão e profundidade atingidas nos últimos decénios pelas investigações das fontes intelectuais dos escritos de Espinosa, principalmente do Tratado Breve e da Ética.

À luz dos resultados desta minudente inquirição, o espinosismo emerge e avulta como produção de um génio que assimilou e transformou elementos de variada proveniência em ordem à fundamentação e desenvolução lógica de uma inicial intuição do Universo, na qual a consciência humana se lhe apresentou como manifestação conexa inseparável do ser e da razão de ser de tudo quanto existe. Sofrendo, assim, numerosas e variadas influências, a filosofia de Espinosa, por intrínseco ditame da mente que a pensou e do método de trabalho com que a aprofundou, não é, de forma alguma, uma filosofia derivada e muito menos um produto de escola ou a marchetaria habilidosa de ideias de outrem.

Deixando de lado o problema geral das origens do espinosismo, designadamente das teses que o filiam na filosofia de Descartes, na filosofia medieval judaica, nas correntes naturalistas da Renascença, na teologia hebraica, na filosofia árabe medieval, no movimento crítico e liberal da Holanda coetâneo do filósofo, sem esquecer a quota que pertence à segunda Escolástica, notadamente de Suarez e, possivelmente, dos Conimbricenses, notaremos apenas, por mais pertinente ao tema desta introdução, o essencial acerca das principais teorias explicativas da génese da conceção monista da substância.

A tese da filiação cartesiana, acima referida, além das dificuldades lógicas, não se harmoniza com as mais recentes investigações, as quais põem a claro que a intuição fundamental, de que Ética é explicitação, foi anterior à influência cartesiana, a ponto de Avenarius ter julgado que quando ela se exerceu já a conceção panteísta se achava constituída na mente de Espinosa, por forma que somente deu azo a modificações.


?>
Vamos corrigir esse problema