Introdução à ética de Espinosa

Bem consideradas as coisas, o método tem uma significação ontológica, no perfeito dizer de Darbon, ou por outras palavras, identifica-se com a conceção de que as relações que as coisas e as ideias têm entre si e com o princípio ou ratio que lhes dá razão de ser são análogas às relações que de dada definição de uma figura geométrica deduz as respetivas propriedades. Por isso, o racionalismo de Espinosa somente se apreende com clareza explicitado pelo método geométrico, quer na ambição, genial e heroica, de tudo submeter à inteligibilidade da razão, quer na impassibilidade, implacável e obstinada, com que elimina todas as manifestações da subjetividade irredutíveis ao seu dogmatismo de possesso da Verdade.

Por isso, a correlação íntima do método e do sistema, se por um lado implicou a clarificação de certos aspetos do pensar, também determinou, por outro, alguns inconvenientes, tais como: o desconhecimento total da historicidade, entendendo por tal a relatividade e temporalidade do acontecer humano que não entronca diretamente na causa sive ratio; a ausência de alguns problemas, notadamente o da existência do mundo externo, que Descartes e Malebranche tiveram de examinar; e ainda, e sobretudo, a exclusão da finalidade e de toda e qualquer consideração teleológica, no domínio da ação, cuja incompatibilidade com a razão geométrica deu aos períodos do Apêndice da parte I (hic., pp. 85 e segs.) o tom agastado de quem se defronta com absurdos, — tão agastado que não sem fundamento se tem dito que somente o «fanatismo da razão» levou uma ou outra vez Espinosa a perder a serenidade intelectual.

O método apresenta-se, pois, intimamente relacionado com a elaboração, com a articulação e com a expressão do sistema.

Extrinsecamente, como processo de expressão do pensamento filosófico, é original —, tão original como foram literariamente o tratado didático de Aristóteles, o diálogo de Platão, a epístola de Séneca, a quaestio resolutiva de S. Tomás de Aquino, a meditação metafísica de Descartes, o ensaio de Locke, e as traduções verbais da aplicação do método transcendental, por Kant, do método dialético, por Hegel, e do método fenomenológico, por Husserl.

Intrinsecamente, porém, o caso muda de figura. A juízo de Kant, nas Investigações sobre a Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral (1764), dissentindo de Wolff, que se esforçava por aplicar o método matemático à Filosofia, não há equipolência entre a evidência matemática e a evidência filosófica; no parecer de Hegel, nas Lições de História da Filosofia (1836), o método é o defeito capital do espinosismo, e             Edouard von Hartmann, na História da Metafísica (1899), não hesitou em escrever que o seu emprego equivalia à aplicação de uma «camisola de forças».

Todos estes juízos encerram uma parcela de verdade, mas pecam por excesso. Em relação à estrutura e desenvolução interna do sistema, mormente se o considerarmos independente da mente que o pensou, os seus defeitos são incontestáveis. Considerado, porém, em relação à época, dominada pelo fulgor da demonstração matemática e pela fecundidade da conceção mecanicista da Natureza, e em relação à pessoa viva do filósofo, temos de reconhecer que este era o método ideal e que nenhum outro se lhe podia comparar, dado Espinosa ter por tão natural corno o ar que se respira que, se a vida é dada para viver, a razão é dada para compreender, para julgar e para proceder de harmonia com os seus ditames.

Consequentemente, o método geométrico de demonstração tinha de acudir ao seu espírito como expressão acabada da impassibilidade do juízo, sobranceiro à precipitação e à prevenção de que Descartes pusera de sobreaviso quem quer que se propusesse a inquiridor de verdades, e como processo incomparável de constranger o assentimento pleno, que é o desiderato de toda a verdade que se demonstra.

A primeira parte da Ética tem por título, De Deus; dada a equação Deus ou a Natureza— no prefácio da IV parte, Aeternum illud et infinitium ens quod Deum seu Naturam appellamus —, pode considerar-se um tratado de ontologia, se se não preferir chamar-lhe uma explicação metafísica da realidade no seu conjunto.

Constituem-na 36 proposições, seguidas de um Apêndice. O seu todo, apesar de concatenado, pode dividir-se em grupos, de harmonia com o tema predominante em cada um. Assim, com Harald Hõffding, consideraremos os seguintes: a) Definições e axiomas; b) Teoria da substância e sua identidade com o conceito de Deus (Prop. 1-14); c) Deus e os seus atributos, ou a Natureza naturante (Prop. 15-28); d) Deus e as coisas particulares, ou a Natureza naturada (Prop. 29-36); e) Ciência e teleologia. (Apêndice).

a) Definições e axiomas

Pela forma, corno pelo fundo, o espinosismo é um sistema que pretende deduzir da definição de ser infinitamente infinito, ou Deus, a ordem e a fatualidade do Universo. Daí, o desígnio de raciocinar, como na Geometria, a partir de noções claramente definidas, ou mais explicitamente, em função do método que adotou, a necessidade de apoiar o encadeamento das proposições sobre um conjunto de definições e de axiomas.

Pelo emprego frequente que de umas e de outras faz, assim como pelas comparações que por vezes estabelece, como por exemplo no escólio da prop. XVII, I, (hic., p. 44), é-se levado a crer que Espinosa admitiu a equivalência, pelo que respeita ao uso, entre as definições e axiomas dos Elementos, de Euclides, e as definições e axiomas da Ética. A colocação tópica no início de cada parte confirma esta maneira de ver. Será, porém, assim?

Em carta a Tschirnhaus, de 15 de Julho de 1676 (Ep. 83), declara Espinosa que a opinião deste seu correspondente acerca da impossibilidade de se deduzir mais de uma propriedade, da definição de uma coisa considerada em si mesma, talvez tenha lugar nas coisas mais simples e «nos seres de razão (nos quais conto as figuras), mas não as reais» —, quer dizer, não identificava as definições geométricas, relativas, a figuras ideais imaginadas no espaço, com as definições de coisas, que atingem a realidade. De comum, somente teriam a função lógica no encadeamento das proposições; e sendo assim, as definições, e os axiomas da Ética teriam maior compreensão que as definições e os axiomas de Euclides.

Com efeito, as definições e os axiomas da Ética contêm termos de antiga e contínua aplicação, como causa de si, substância, atributo, modo, essência, existência, eternidade, liberdade. Como vocábulos, não são criação de Espinosa, porque têm atrás de si os séculos da Escolástica; no entanto adquiriram na pena do autor da Ética sentido próprio, já em função da sua ontologia, já em função da conceção da unidade do Mundo, já em função da fatualidade do Universo.

Sustentou-se já que as definições tinham o sentido de puras categorias do entendimento; não contestando que elas exprimem formas gerais de pensar a realidade, julgamos não obstante que não são puramente formais, porquanto epistemologicamente estabelecem a identidade entre a realidade e a respetiva ideia, o que determina logo de início que o sistema seja a um tempo dedução lógica e expressão ontológica.


?>
Vamos corrigir esse problema