Introdução à ética de Espinosa

Daqui, duas consequências que, dentre muitas outras, importa acentuar, pela feição peculiar que conferem ao espinosismo: o racionalismo e o eticismo.

O racionalismo, que com ter sido o signo dominante da filosofia do século XVII nem por isso se apresenta com um só matiz, significa em Espinosa que a razão — causa sive ratio — é a única via de compreensão e a norma exclusiva da ação. Identificada com a própria inteligibilidade e com as noções de causa e de lei, tanto na ordem do pensamento como na ordem das coisas, a razão define-se como negação da contingência, ou por outras palavras, pelo pressuposto de que tudo o que existe e ocorre, existe e ocorre necessariamente, como ordenação imanente às próprias ideias, seres e eventos.

Por isso, Deus, isto é, a substância única ou Natureza naturante, é não só o Ser essente donde tudo promana mas também a Razão inteligível, em virtude da qual todas as coisas se deduzem da essência da Natureza divina com a mesma necessidade com que da definição de triângulo se deduzem as respetivas propriedades.

Deus é, assim, a própria racionalidade, o ser absoluto e infinito, isto é, a substância constituída por infinitos atributos, dos quais procedem todas as determinações concretas das coisas e dos eventos, a razão de ser e a unidade de tudo o que existe, a única realidade ontologicamente absoluta, na qual se identificam a essência, a existência e a atividade criadora —, numa palavra, a natureza naturante, que só a intuição racional apercebe, plenamente, e que é fonte e razão de ser da natureza naturada, que os nossos olhos vêem, e a nossa razão lógica cumpre se esforce por compreender adequadamente.

Só Deus é causa de si mesmo; tudo o mais é produzido, e coisa alguma tem fundamento em si própria; daqui a consequência de que, afora a substância divina, ou por outras palavras, o ser essente e atuante de Deus, somente existem coisas e eventos vindos à existência por causas que lhe não são autónomas, isto é, na linguagem de Espinosa, os modos ou manifestações da substância divina.

Significa isto que somente Deus existe por si e tudo o mais existe pela essentia actuosa de Deus —, e, portanto, a força, o princípio, a explicação ou razão de ser do Universo e de tudo o que nele se produz e verifica é imanente, e de toda a eternidade, ao próprio Universo, e não transcendente, isto é, como efeito produzido em certo momento por uma vontade sumamente perfeita.

O paralelo superficial com Descartes torna claro o pensamento de Espinosa.

Na conceção cartesiana do Mundo, a existência de Deus como criador do Universo, garante do exercício do pensamento e fundamento da teoria do saber, era pressuposto necessário, dado o genial pensador das Meditações Metafísicas ter estabelecido que eram essencialmente irredutíveis as duas substâncias por que se manifestava a existência, isto é, a Extensão, como atributo essencial da realidade corpórea, e o Pensamento, como atributo essencial da realidade espiritual.

A heterogeneidade radical destas duas substâncias, cada uma das quais possuía essência e existência próprias, implicava metafisicamente a existência do Ser sumamente perfeito que as houvesse criado existentes em si, mas não subsistentes por si (o que fundou a teoria cartesiana da criação contínua), e tivesse ainda estabelecido a possibilidade de se comunicarem, e, portanto, a possibilidade de o pensamento, essencialmente inextenso, poder conhecer com exatidão os corpos, essencialmente extensos.

Para Espinosa outro era o teor das relações de Deus com o Mundo.

Estabelecendo que não podem existir duas ou mais substâncias com o mesmo atributo e que de substâncias que nada têm de comum entre si uma não pode ser causa da outra, o metafísico da Ética concluía pela unicidade da substância.

Por palavras mais acessíveis, do vocabulário contemporâneo, isto significa que a condição necessária para que se torne lógica e ontologicamente possível a existência dos seres e da fenomenalidade do Universo consiste em que a essência de que tudo procede não pode repartir-se em substâncias independentes dela, nem tão-pouco sair de si mesma para estabelecer fora de si seres ou substâncias, que sejam diversas em quantidade e heterogéneas na qualidade.

Consequentemente, não são possíveis substâncias finitas, mas somente a substância infinita, isto é, Deus; e, portanto, a Matéria e o Espírito, ou, no vocabulário cartesiano utilizado por Espinosa, a Extensão e o Pensamento, isto é, as determinações ontológicas com que se nos apresenta o conjunto da realidade, não são substâncias independentes e heterogéneas, mas atributos ou propriedades da substância única e infinita, que é Deus.

As coisas e eventos não são, pois, como para Descartes, manifestações de substâncias finitas e independentes, mas manifestações — ou modos, no vocabulário de Espinosa — dos atributos divinos, ou por outras palavras, da substancialidade de Deus, como princípio e unicidade de tudo quanto existe.

Daqui, numerosas consequências, das quais apenas acentuaremos as seguintes, dada a feição deste brevíssimo conspecto.

Em primeiro lugar, resulta que a relação entre o ser infinito e eterno e os seres e eventos finitos e transitórios não é transcendente, isto é, procedente de uma causa ou ser extrínseco ao Universo, mas a relação imanente ao próprio Universo de uma ação eterna e infinita, da qual tudo dimana com a mesma necessidade e razão de ser com que da definição do triângulo resultam as respetivas propriedades.

A analogia que Espinosa estabelece entre a derivação do Mundo e a derivação das propriedades das figuras geométricas põe a claro o pensamento de que o Mundo não é criação da vontade divina. É o que é, em virtude da razão que liga a consequência ao princípio de que ela procede; por isso, cada coisa é o que é e não pode ser diversa, nem podia tê-lo sido. Nada existe, pois, para além da substância e seus modos, pelo que são «entes de imaginação» as estimativas e valores que nascem das relações entre os modos, isto é, as coisas e eventos, como sejam o bem e o mal, o número e o tempo, que somente existem na cabeça de quem os aprecia ou conta.

Resulta em segundo lugar que o Universo fenoménico, ou mais propriamente a Natureza naturada, somente é pensável como sistema de relações modo-substanciais, isto é, como manifestação de um Ser único, ontologicamente infinito e com uma infinidade de atributos, dos quais somente apreendemos dois; o Pensamento, ou a realidade espiritual, e a Extensão, ou a realidade material enquanto pensável como objeto de uma Física que se exprima em termos de Geometria.

Os seres particulares existem porque é da natureza divina, ou por outras palavras, da essência do poder infinito do Ser único, ou, ainda, da Natureza naturante, exprimir-se infinda e infinitamente por uma infinidade de maneiras. Pelo que, de Deus enquanto Pensamento, se gera a inteligência infinita da qual derivam as ideias, que são modos do Pensamento; e de Deus enquanto Extensão, derivam, por diversos graus da causalidade divina, os corpos e eventos, que são modos da Extensão.

Por estas expressões deve entender-se que os modos, isto é, as ideias e os corpos, não têm existência autónoma —, ou por outras palavras, existem em virtude dos atributos da natureza divina e pela mesma razão por que da definição de triângulo resulta que os três ângulos sejam iguais a dois retos e as demais propriedades desta figura geométrica.


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