Introdução à ética de Espinosa

Deus não tem vontade, nem entendimento, nem qualquer sentimento humano, porque a vontade, o entendimento e os sentimentos são modos da Natureza naturada e não da Natureza naturante (I, prop. XXXI, XXXII, cor. 2). Não pode, pois, atribuir-se a Deus qualquer noção ou ideia que implique o conceito de consciência intelectual, moral ou sensível, pois que entre a inteligência e a vontade divinas e a inteligência e a vontade humanas há tanta relação como a que existe entre o Cão, constelação celeste, e o cão, animal que ladra (I, prop. XVII).

O sentido que Espinosa verteu no conceito de Pensamento como atributo de Deus é, pois, profundamente diferente do sentido quase universalmente admitido por teólogos e por filósofos, e a diferença ainda mais se acentua no conceito da Extensão como atributo de Deus.

Com efeito, o senso comum não concebe sem estranheza a opinião de que Deus é ser extenso, dado associar a noção de extensão à representação espacial dos corpos materiais; e ao senso comum junta-se o juízo de teólogos e de filósofos, notadamente Descartes, que da noção de extensão, isto é, da possibilidade dos corpos poderem ser divididos em partes, concluía pela natureza incorpórea de Deus, dado esta ser incomparável com a divisão. Quer a extensão fosse concebida pelo entendimento, quer imaginada ou percebida, sempre Descartes teve por seguro que a divisibilidade constituía a sua essência, por forma que, como diz na Via Meditação Metafísica, «il y a une grande différence entre l'esprit et le corps, en ce que le corps, de sa nature, est toujours divisible, et que l'esprit est entièrement indivisible…»

Posta esta condição geral, da qual resultava a representação do universo material dos corpos com as características da espacialização, tridimensionalidade, mobilidade e variabilidade de posição, é óbvio que a teorização da aplicabilidade da Extensão a Deus tinha de partir da crítica da noção de divisibilidade. Foi o que Espinosa fez, procurando demonstrar (I, prop. XIII, XIV e XV) que a Extensão, enquanto considerada como essência de Deus, isto é, considerada em si mesma, não pode ser constituída por partes finitas, sendo, portanto, indivisível; e sendo infinita, não é mensurável.

A seu juízo, cumpre considerar a Extensão sob dois pontos de vista diferentes: o da imaginação e o do entendimento.

A Extensão que a imaginação representa é a Extensão aparente, constituída por corpos, isto é, seres compostos de partes, divisíveis e por vezes até divididos em figurações de contorno mais ou menos nítido.

A Extensão que o entendimento representa, ou seja a Extensão inteligível, ao contrário da Extensão imaginada ou aparente, é una, contínua, infinita e indivisível.

A Extensão aparente é dada pelos corpos ou modos extensos; a Extensão inteligível é um atributo de Deus, isto é, um elemento sem o qual é inconcebível o Ser. Como tal, é indivisível, cometendo-se o vício lógico da petição de princípio quando se supõe que ela é divisível.

A indivisibilidade torna-a, pois, compatível com a natureza do ser divino; supondo-a porém divisível, a Extensão inteligível nem por isso deixaria de ser atributo de Deus desde que fosse infinita e eterna, pois dada esta condição nada haveria que limitasse a Extensão divina e, portanto, que limitasse a potência de Deus.

Há, contudo, quem conteste que a Extensão seja infinita, porque se o fosse, de duas uma: ou seria composta de partes finitas, ou de partes infinitas. No primeiro caso, dar-se-ia o absurdo do infinito ser composto de partes finitas; no segundo, se se dividisse a Extensão em duas partes, haveria duas substâncias, num extremo finitas e noutro infinitas, o que também é absurdo.

Quem assim argumentava tinha em vista, mais ou menos explicitamente, a impossibilidade do infinito atual, tese fundamental e vital do espinosismo; por isso, Espinosa se deteve na refutação da divisibilidade corno propriedade inerente à Extensão, cujos defensores raciocinavam, dizia, como quem definisse o círculo pelas propriedades do quadrado e depois concluísse que os raios do círculo não eram iguais.

Unidade, infinidade e indivisibilidade da Extensão enquanto atributo da substância —, tal foi a tese que Espinosa opôs a Descartes, e que Malebranche com tanta agudeza procurou refutar num debate emocionante. Era a tese coerente com a ontologia em que assenta a Ética, pois, dentre outras razões, como escreve Lachièze-Rey, «a extensão em Espinosa é um naturante, e entre o naturante e o naturado não pode haver identidade nem analogia, por se não tratar de dois termos discretos suscetíveis de serem comparados de fora e colocados no mesmo plano, pois não poderiam colocar-se um ao lado do outro para daí tirar um conceptus communis ou formar um todo. Nem o pensamento, condição imanente das ideias, nem a extensão, condição imanente dos corpos, são propriamente ideias ou corpos ou algo de comparável a ideias ou corpos; sendo assim, parece estabelecer-se uma aproximação entre os dois naturantes, aos quais se torna difícil consignar uma essência bem delimitada».

Com serem essências determinantes e funções, quando considerados em relação aos modos que deles procedem, os atributos nem por isso deixam de ser idênticos em Deus, ou por outras palavras, em Deus, o Pensamento não se distingue da Extensão. A concebibilidade das respetivas essências não afeta a unidade da substância ou Deus; o facto, porém, de serem concebíveis distintamente não confere ao sistema espinosano a característica de um monismo idealista?

É a opinião de Frederick Pollock, ao sustentar que a «doutrina de Espinosa, quando reduzida aos seus termos mais simples, é a de que nada existe a não ser o Pensamento e seus modos». «Os atributos de Espinosa são definidos na realidade como objetos, ou antes como mundos objetivos; porém, a forma geral da definição encobre este facto supremamente importante: o mundo do Pensamento, e ele somente, é simultaneamente subjetivo e objetivo. O intelecto que percebe um atributo como constituindo a essência da substância pertence ao atributo do Pensamento. Desta maneira, se levarmos mais longe a análise, achamos que o Pensamento absorve todos os outros atributos, porque todos os atributos concebíveis vêm a ser aspetos objetivos do próprio Pensamento».

O idealismo absoluto caracteriza, pois, a juízo do insigne expositor de Espinosa, a estrutura teorética do sistema. Sem contestar a sagacidade e profundeza das reflexões de Pollock, pensamos com Delbos que a interpretação idealista parte de um pressuposto que não é adequado ao sistema espinosano: o de admitir «que em razão da sua virtude representativa, o Pensamento, tomado como entendimento, desempenha o papel de condição necessária, de princípio, em relação aos objetos que ele representa, e até em relação à existência destes objetos. Ora, para Espinosa, qualquer género de ser que não seja o Pensamento, ainda mesmo quando representado pelo Pensamento, não deixa de ter uma natureza radicalmente distinta... Que o Pensamento represente todos os outros atributos, isso significa, na filosofia espinosista, que todos os atributos, ao mesmo tempo que são géneros de ser, são supremamente inteligíveis; ora isto é o racionalismo, e não precisamente, mesmo em germe, o idealismo. Consequentemente, a unidade dos atributos não é a unidade de todos os atributos num deles, mas a de todos os atributos na substância única que eles constituem».            


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