Introdução à ética de Espinosa

Ao contrário de Malebranche, a filosofia de Espinosa não só não teve por ponto de partida a filosofia de Descartes, senão que a evolução do seu pensamento, apesar de contínua, apresenta duas fases distintas no conteúdo das leituras: a inicial, correspondente ao período da escolaridade rabínica em Amesterdão (até 1651?-1654?), e a de desenvolvimento, posterior à excomunhão pela Sinagoga (1656).

Para o pensador que deveras se vota à sua obra, a maturidade é quase sempre a desenvolução de anelos e pressentimentos da juventude. Espinosa parece não ter feito exceção à regra comum, porque embora se não saiba com segura exatidão o curso dos pensamentos e o teor dos dizeres que deram motivo à excomunhão, tudo concorre, não obstante, para o juízo de que a ideia nuclear do, espinosismo, ou seja a unidade de Deus e do Mundo, isto é, o ser do Mundo como Deus desenvolvendo-se e manifestando-se, se gerou durante a escolaridade na Ez Hayyim yeshiba anexa à Sinagoga de Amesterdão.

São quase sempre indetermináveis as nascentes do pensamento vivo, mas é-se como que constrangido a admitir que o espírito do jovem seminarista se deixou enlear pelo contraste entre a conceção antropomórfica da Divindade, que era sem dúvida a do ambiente religioso em que vivia, e a metafísica infinitista sugerida pela conceção monista do Zohar e por algumas frases de místicos e de teólogos israelitas da Meia Idade.

No século XVII, Wachter aproximou o espinosismo da Cabala, ideia que Leibniz levou tão longe que na sua refutação da Ética chegou a identificar os modos eternos e infinitos da teoria da substância com os sephirot dos cabalistas  no século passado, M. Joel procurou estabelecer que o espinosismo é o remate de uma longa evolução da teologia hebraica e a síntese das tendências intelectualistas e místicas dos judeus da Idade Média; e mais recentemente Dunin Borkowski afirmou, a propósito da Puerta dei Cielo de Abraham Herrera (#t” 1639, em Amesterdão), que as doutrinas cabalísticas deste judeu peninsular estavam mais próximas do espinosismo que a poesia metafísica de Giordano Bruno.

A esta luz, Espinosa aparece como elo de uma longa cadeia de filósofos israelitas. A sua mente teria assimilado e repensado velhas conceções, notadamente por mais pertinente ao tema destas páginas, de Levi ben Gerson, por intermédio de Chasdai Crescas, que Espinosa cita numa epístola (XII), a ideia da extensão infinita e indivisível, e de Maimónides, no Guia dos Transviados (Moreh Nebukim), dentre outras, a conceção de que a unidade de Deus se manifesta na unidade da Natureza.

A intuição da identidade de Deus com o Ser ou substância do Mundo e o sentido ético-religioso inerente ao espinosismo teriam nascido, assim, durante a escolaridade no seminário israelita de Amesterdão. Pode até pensar-se, com vista nas sábias observações de H. Austryn Wolfson, que a própria construção da Ética, abrindo com a definição e teoria da substância, se não furtou à tradição dos tratados medievais de Metafísica, que tiveram por modelo o Al-Shafa de Avicena e sempre começavam pela fórmula: O Ser divide-se...

Seja ou não exato este modo de ver, que permite reportar à escolaridade não só a intuição ontológica como a génese arquitetónica da Ética, um ponto se deve ter por seguro: o abandono, por esta época, da conceção de Deus criador e transcendente, que era a crença que religava e afervorava os fiéis à Lei velha, pela qual muitos deles haviam sofrido e padecido provações de toda a espécie; e consequentemente, o amanhecer de outra conceção ético-religiosa que se haveria de edificar sobre a imanência de Deus no Universo. Não sem acerto escreveu S. Karppe, que no fundo do pensamento de Espinosa «é Iahvé que existe, quando o não satisfaz o dualismo cartesiano do espírito e da matéria, é Iahvé que se encontra como elemento integrante da sua substância. Não é, certamente, o Iahvé dos profetas e dos teólogos judeus tradicionalistas; é um Iahvé que estudou Platão e Plotino, os panteístas do século XII e Giordano Bruno, Maimónides, Gerson e Chasdai ben Crescas, Bacon e Descartes, mas é sempre por muitas feições o Iahvé da Bíblia. Assim como no monoteísmo há apenas lugar para Iahvé, assim também no monismo de Espinosa há tão somente lugar para a substância. A Ética é o comentário do versículo do Êxodo: «Eu sou o ser», comentário alimentado por certo número de doutrinas filosóficas colocadas entre a Escritura e a época de Espinosa».

Com a expulsão de Israel, em 1656, começou para Espinosa, se é que se não acentuou, uma vida intelectual aberta a outros rumos do espírito. Como seminarista da Ez Hayyim yeshiba, a preparação para o rabinato somente lhe facultava o contato unilateral com a literatura teológica e filosófica de autoria israelita, notadamente em castelhano; agora, porém, liberto de escrúpulos, de tutelas e vetos, abria-se-lhe o passo livre da cultura ocidental, de que o latim era instrumento e veículo. A partir de então, leu muito, meditando principalmente Descartes, Hobbes, e alguns dos escolásticos, isto é, os «recentiores Peripatetici», a que alude no final de uma epístola (XII) a Louis Meyer e cuja individualização se não precisa com inteira segurança, o que aliás não exclui que neles se contenham com muita probabilidade Suarez e Pedro da Fonseca.         

 

A intuição da unidade e da infinidade da substância já estava, porém, arreigada no seu espírito; exprimindo-a em termos do vocabulário escolástico e cartesiano, Espinosa deu expressão atual a uma ideia antiga, que é possível tivesse sofrido na sua teorização modificações e desenvolvimentos na vestidura que definitivamente lhe deu, mas cuja raiz é anterior ao conhecimento da filosofia de Descartes.            

2.° — Identidade de Deus e da substância

A leitura das primeiras proposições da Ética, na ordem por que se apresentam, gera a impressão de que Espinosa demonstrou a unicidade e a infinidade da substância para poder estabelecer na prop. XIV que afora Deus não existe nem pode conceber-se substância alguma, ou por outras palavras, a substância e Deus são um e o mesmo ser.      

Com efeito, se uma substância não pode ser produzida por outra (prop. V), a essência da substância tem de envolver a sua existência (prop. VII) e na sua ordem tem de ser infinita (prop. VIII). Ora é impossível a existência de duas ou mais substâncias infinitas, cada qual com infinidade de atributos infinitos, pelo que a substância tem de ser única (prop. XII e XIII) e o seu conceito se identifica com o de Deus, que por definição (VI) é «o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos». 

A síntese é obtida mediante a ideia de infinidade, pela coincidência do conceito de substância, considerada como única e absolutamente infinita, com o de Deus, por definição ser único e absolutamente infinito. Sem examinar se a argumentação comete ou não o feio pecado que os lógicos designam de círculo vicioso, é óbvio que a identificação surge no termo da dedução das propriedades da substância —, isto é, Espinosa teria partido do conceito de substância para o de Deus.


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