Introdução à ética de Espinosa

Como as recompensas raras e custosas, que só se deixam alcançar por quem se torna digno de as merecer pela tenacidade e isenção do esforço, assim a apreensão da intuição fundamental do sistema de Espinosa e, sobretudo, a compreensão das noções e correlações em que ela se diversifica com incomparável fascinação, não se oferecem com prontidão nem transparência. Daí, a diversidade das interpretações e modos de ver, derramados por copiosíssima literatura e por juízos antagónicos, que vão desde o «vómito do Inferno» ao «ébrio de Deus», do metafísico de equânime poder de compreensão, que viveu e pensou sub specie aeternitatis, ao teorizador militante de modos de ver que o situam entre os fundadores da conceção materialista do Mundo.

Este antagonismo, que poderia desdobrar-se em múltiplos contrastes, é claro indício da riqueza e da complexidade do pensamento espinosano e mostra que a sua compreensão não é fácil e somente se alcança com o estudo e com a meditação.

Convém, porém, que se aborde a leitura da Ética com uma ideia geral que facilite a apreensão do que subjaz ao aparato geométrico das proposições e das demonstrações e permita divisar uma construção metafísica toda ela encaminhada a libertar o espírito do conhecimento inadequado do Mundo e de si mesmo. Por isso, avançando o que deveria ser conclusão, e apenas com o intuito de auxiliar a tarefa compreensiva do leitor e de estabelecer conexão entre as «introduções» que dedicamos a cada uma das cinco partes da Ética, exporemos brevissimamente o que julgamos ser a problemática estrutural do sistema de Espinosa, deixando de lado o processo demonstrativo, a ordem e encadeamento das ideias e, por vezes, o próprio vocabulário, tornado em parte obsoleto.

No que se segue não pretendemos apologizar nem refutar, mas somente informar, esclarecer e, sobretudo, compreender, que é a suprema virtude espinosana.

Toda a construção filosófica sistemática — e a Filosofia como tal, isto é, sem mescla de confusão com o discorrer literário ou com a análise conceptual ou psicológica, não é pensável sem o alento da intenção sistemática — assenta, por intrínseco ditame, num ponto de partida que dê ao sistema a configuração do alicerce bem fundado e, para além da travação lógica que estabeleça a coerência interna e a conexão das diferentes partes, nutre-se de uma intuição fundamental ou da atração de um objetivo mais ou menos explícito. Para Espinosa, o ponto de partida foi Deus, e o desiderato supremo, a justificação racional da fruição da eternidade, que não do anelo da imortalidade.

Vulgus philosophicum incipere a creaturis, Cartesium incepisse a mente, se incipere a Deo, foram as palavras com que Leibniz anotou este passo da sua conversação com Tschirnhaus acerca da Ética; e com efeito a obra máxima em que o filósofo sistematizou a sua conceção do Mundo e da vida parte de uma noção de Deus e obedece ao ritmo interno de um como que movimento de processão de Deus para a alma humana e de reintegração total da alma humana em Deus, por forma que a especulação metafísica se remata em regeneração, ou talvez mais propriamente, em redenção moral.

Dir-se-ia que neste ritmo de pensamento se prolonga a vibração das aspirações do misticismo, e com efeito não falta quem veja no espinosismo, mormente depois de Goethe, de Schleiermacher, de Novalis e de Renan, a filosofia de um «ébrio» de Deus.

A identidade das palavras não é, porém, sinal de identidade de significação, porque elas adquirem no vocabulário de Espinosa um sentido que lhes é próprio e irredutível, de sorte que a primeira coisa consiste em saber o que na Ética se entende por Deus e como é concebida a relação de Deus com o Mundo.

As páginas da Ética, que mais acessivelmente podem servir como que de preliminar à apreensão da atitude mental e espiritual do espinosismo, são as do Apêndice à parte I (hic., pp. 80-95).

Neste largo excurso, Espinosa opõe ostensivamente duas conceções do Mundo: uma, que considera produto da imaginação, outra, fundada na razão.

O mundo que a imaginação concebe é o mundo da consciência ignara, para a qual os seres e os eventos aparecem como que independentes, com motivações peculiares de existência, com finalidade própria e como que sujeitos à ação de forças que lhe são extrínsecas.

No mundo físico assim concebido, as coisas e os acontecimentos são como que substancializados e os seres humanos consideram-se um reino à parte; e porque estes têm consciência das suas volições, mas não das causas que as determinam, julgam-se possuidores de livre-arbítrio e, portanto, com a capacidade de orientarem a conduta em ordem a fins previamente preferidos. As noções de fim e de opção, que opinam ser essenciais, são projetadas para o mundo externo, de sorte que o Universo é ideado como um sistema de fins criado por uma vontade livre e transcendente, e os conhecimentos, em vez da objetividade racional, exprimem-se por apreciações puramente subjetivas de bem e de mal, de perfeito e de imperfeito, de belo e de feio, etc.

O Universo da imaginação, dominado pela conceção antropomórfica de Deus e por considerações de ordem teleológica, é, na essência, a representação aristotélico-escolástica do Mundo, e que à mente de Espinosa aparecia como pura invenção humana; por isso, lhe opôs o Universo da razão, como único compatível com o discurso lógico e com a Ciência, isto é, com o mecanicismo da então nova conceção da Natureza.

O Universo da razão é o Universo da inteligibilidade, e é inteligível, não por ser considerado em vista ou em função de um fim ou de um valor, isto é, de uma apreciação subjetiva, mas porque é a manifestação de Deus, que é logos e essentia actuosa, isto é, a um tempo, razão de ser do pensamento e Natureza naturante.

Nesta conceção do Mundo, tudo o que existe e acontece, existe e acontece necessariamente em virtude da natureza de Deus, ou por outras palavras, das leis eternas e necessárias imanentes ao ser das coisas.

No Universo assim ideado, a pluralidade das coisas e dos eventos é considerada como derivação necessária e eterna, ou talvez mais propriamente extratemporal, do Ser ou Deus, que é a razão da essência, da existência e da compreensão de tudo o que existe; e consequentemente, a compleição humana não constitui um mundo à parte na Natureza e o destino do homem consiste em adequar o seu pensamento à ordem universal, eterna e necessária, que é imanente ao mundo —, ou por outras palavras, como as do escólio da prop. 17 (hic, p. 44), a compreender que da omnipotência de Deus resulta uma infinidade de coisas numa infinidade de modos, tal como da natureza do triângulo resulta de toda a eternidade e para a eternidade a igualdade da soma dos seus ângulos a dois retos. Porque a existência humana é somente um modo particular do encadeamento causal que rege o Universo, o homem não é um ente à parte e não é livre, se por tal se entender a possibilidade de se autodeterminar ou da sua vontade derrogar o nexo universal.

Esta conceção é o desenvolvimento no plano lógico de uma intuição primária e fundamental, que a nosso ver foi o ponto de partida da metafísica de Espinosa e constitui a essência do espinosismo: o Universo é Deus, isto é, o Ser único, infinito, eterno e necessário, desenvolvendo-se a si mesmo e manifestando-se segundo leis necessárias e inerentes à sua própria natureza. Por isso, ao contrário do comum dos filósofos, cuja problemática tem por centro o Homem, na variedade dos seus interesses afetivos ou racionais e a cuja luz procuram esclarecê-la, Espinosa despersonaliza o pensamento para o dirigir direta e exclusivamente para a razão de ser do mundo e da fenomenalidade, isto é, para o que simultaneamente lhes dá existência e torna racionalmente pensáveis.


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